Выбрать главу

"Há ainda os estádios do Euro 2004", lembrou Tomás. "Isso é que foi um bem produtivo, hem?"

"Então não foi?"

"Quantos estádios foram? Sete?"

Filipe abriu as palmas das duas mãos.

"Dez", exclamou com ênfase. "Sete era o que a UEFA exigia, mas os nossos

voluntariosos

governantes,

pessoas

que

respeitam

escrupulosamente o dinheiro dos contribuintes, mandaram construir em 117

regime de PPP um total de dez estádios, bem mais do que os necessários, a um custo de quase setecentos milhões de euros. Só o estádio de Braga teve um desvio médio relativo ao custo previsto muito superior a trezentos por cento. O governante com a pasta do Desporto, José Lello, tendo sido informado de que o estádio de Leiria iria custar o equivalente a vinte milhões de euros, é citado como tendo dito: 'Vinte milhões? Tem de ser muito mais!' Primeira pergunta: porquê? Resposta: porque havia uns governantes e uns autarcas parolos que queriam brilhar junto do seu eleitorado. Segunda pergunta: que riqueza geram os estádios? A relação custo-benefício foi devidamente acautelada? Não. O

que foi acautelado foi a reeleição desses autarcas e o brilharete dos governantes junto do eleitorado e, má-língua decerto, dos construtores amiguinhos. Terceira pergunta: o que aconteceu a esses estádios? A resposta é triste. O volume das receitas geradas nos estádios de Leiria, Loulé e Aveiro é insuficiente para cobrir as despesas. Os prejuízos são tantos que a Câmara de Aveiro até já anda a pensar em demolir o dela."

Olhou para o condutor. "Pergunto-te eu: alguém foi preso por estes crimes contra a economia portuguesa?"

A pergunta desencadeou um ataque de riso do historiador.

"Que eu saiba não."

"Mas as parcerias público-privadas serviram ainda para outra coisa", indicou Filipe. "As PPP rodoviárias passaram em 2007 para uma coisa chamada Estradas de Portugal, que mais não parece do que um esquema concebido para fazer desaparecer dinheiro. O valor actual líquido dos encargos previstos para essas PPP era em 2009 de doze mil milhões de euros, valor que no ano seguinte desceu por artes mágicas para cinco mil milhões."

Tomás fez um rápido cálculo de cabeça.

"São menos sete mil milhões", observou. "Para onde foi esse dinheiro?"

"Sei lá! Nunca isso foi explicado nem justificado de uma forma 118

adequada! Mas o facto é que, de um ano para o outro, desapareceram sete mil milhões de euros em termos de valor actual líquido! Alguém foi preso?"

O condutor, sempre de olhos na estrada, sorriu.

"Pois..."

"A verdade é que uma fatia crescente das receitas e das despesas públicas foi colocada fora do Orçamento do Estado. Os esquemas para o fazer são inúmeros. O estado e as câmaras têm limitações orçamentais? Abrem-se umas empresas estatais e municipais para fazerem despesa não controlada pelo Orçamento do Estado nem pelo parlamento. Foram criadas perto de mil sociedades de capitais públicos para gastar à farta e sem controlo e os dinheiros públicos têm de alimentar mais de treze mil entidades, entre institutos, fundações, observatórios e afins. Os hospitais gastam muito dinheiro e isso está a aumentar a despesa do Orçamento do Estado? Em vez de controlar a despesa transformam-se os hospitais em empresas públicas, como aconteceu em Lisboa com o Curry Cabral, e assim deixam de fazer parte do Orçamento, que fica mais magro e permite aos governantes dizerem com ar sério e pose de estado que estão a diminuir os gastos. A despesa continua a ser feita, claro, mas ficou invisível. Através de todas essas empresas públicas, os governos contraíram grandes empréstimos e fizeram despesas brutais sem que nada ficasse registado no Orçamento do Estado."

"Se bem me lembro", atalhou Tomás, "os geniais homens e mulheres que nos governaram ao longo do tempo chamavam a isso 'engenharia orçamental'."

"Pois

eu

chamo-lhe

aldrabice,

gatunagem

e

vigarice

desavergonhada!", exclamou Filipe. "É como se um hotel começasse a arder e os donos decidissem esconder esse facto dos hóspedes para manter a reputação do estabelecimento." Balançou a cabeça. "O

curioso, meus caros, é que ficaram todos muito admirados quando 119

viram que o país se incendiou! Para alijar responsabilidades, desataram a dizer que a culpa é toda da crise internacional..."

Fez-se silêncio dentro do automóvel. Os três ocupantes iam de olhar fixo na estrada e o passageiro de trás amadurecia o que acabara de ouvir. Já todos tinham lido coisas sobre o assunto, claro, mas eram notícias soltas, aparentemente sem relação umas com as outras, como folhas num galho. Dessa vez era diferente, tudo aparecia relacionado, via-se toda a árvore e vislumbravam-se até os primeiros contornos da floresta.

"Isso é uma tristeza", acabou Alexandre por reconhecer, tentando redireccionar a conversa para o ponto por onde ela tinha começado.

"Não podemos esquecer, no entanto, que as infra-estruturas são necessárias num país. É evidente que houve inúmeros abusos, má gestão e aldrabice, mas isso não invalida a necessidade dessas obras.

Como pode a economia crescer se não houver infra-estruturas?"

"Claro que os bens não-transaccionáveis são importantes", aceitou Filipe. "Mas não podem é constituir o centro da actividade económica nem desequilibrar as contas públicas, como acabou por acontecer em Portugal! Em vez de apostar em coisas que se exportassem, os governos optaram por derreter o dinheiro em betão.

Foi este o sector da economia que cresceu e que atraiu os melhores salários. Para responder à competição do sector não-transaccionável, o transaccionável teve de aumentar os salários, o que fez com que os seus produtos encarecessem e se tornassem menos atraentes do que os estrangeiros. Aconteceu assim uma coisa incríveclass="underline" não só os produtos portugueses se tornaram pouco apelativos para os consumidores estrangeiros, por serem demasiado caros, como se tornaram pouco apelativos para os próprios consumidores portugueses! Considera isto aceitável?"

Alexandre ficou sem saber o que dizer.

"Realmente..."

120

"Vendo uma coisa destas acontecer, o que fizeram os governos?"

Ao volante Tomás encolheu os ombros.