"Assobiaram para o ar", disse com um sorriso amargo. "E, se bem me lembro, anunciaram grandes investimentos na economia, não foi?"
"Investimentos em quê? Mais obras públicas, mais betão, mais bens não-transaccionáveis!" Filipe soltou uma gargalhada. "Uns génios!
Umas luminárias! Os nossos governantes eram tão bons, tão bons, que nos conduziram alegremente à bancarrota, os idiotas! Tornaram o sector não-transaccionável a estrela da economia, afundaram aí milhões e milhões de euros, atraíram para aí os melhores talentos, esmagaram o país sob um manto de betão! Auto-estradas, Scut, estádios... foi uma pândega!"
"Mas as construtoras civis estão agora a trabalhar em Angola e noutros países", observou Alexandre. "Desse modo estão a exportar, não estão?"
"Não exportam nada!", devolveu Filipe com a voz carregada de sarcasmo. "Quando a construtora chega a Angola contrata operários angolanos. O betão usado em Angola é feito lá. A única coisa que a construtora exporta é o trabalho de um punhado de engenheiros e arquitectos. Ou seja, nada de significativo. Ao internacionalizarem-se, as empresas do sector não-transaccionável não exportam bens nem serviços em quantidade relevante. Acredite em mim, rapaz. Só o sector transaccionável é exportador. Desde o início do euro, Portugal está na lista da frente dos países que fizeram maior esforço de investimento em percentagem do PIB, mas esse dinheiro foi derretido em betão e... puf!, desapareceu. Investimos muito e mal."
"Mas o que poderia o estado fazer?", questionou-se o passageiro do banco traseiro. "Deveria investir em bens transaccionáveis? O estado punha-se a fazer sapatos e vinho e azeite?
Isso não faz sentido!..."
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"Claro que não", concordou Filipe. "Numa sociedade de mercado como a nossa, o sector transaccionável está entregue aos privados. São eles que fazem esses bens para exportação."
"Então o que deveria ter feito o estado?"
"Em vez de estourar o dinheiro em betão, usava-o para ajudar o sector transaccionável a tornar-se mais competitivo."
"Mas como? Dava o dinheiro directamente aos privados? Isso queriam eles!"
"Financiava a aquisição de tecnologia, por exemplo. Pagava a requalificação dos trabalhadores. Baixava os impostos cobrados às empresas."
Alexandre franziu o sobrolho.
"Ajudava os privados a terem mais lucro, quer o senhor dizer..."
"Também", admitiu Filipe. "E então? O lucro não é um crime, como você insinua e muita gente quer fazer crer neste país, mas um objectivo legítimo da actividade económica. Você por acaso trabalha de graça?"
"Eu?"
"Sim. Imagine que, em vez de o terem despedido, os tipos da garagem do seu primo lhe sugeriam que trabalhasse sem receber dinheiro. Aceitava?"
"Claro que não, que disparate! Isso era aceitar ser explorado."
"Ah, malandro!", exclamou com voz de falsete. "Isso quer dizer que você só pensa no dinheiro, no lucro..."
"Não é isso! Preciso do salário porque tenho de viver."
"Quem trabalha por salário trabalha por dinheiro, meu caro. Ou seja, de certo modo trabalha por lucro. Isso não é vergonha nenhuma, fique descansado. Trabalhar por dinheiro e por lucro é perfeitamente legítimo." Ergueu um dedo. "O que é válido para si, contudo, é também válido para um empresário. Procurar o lucro é natural e salutar numa economia, não há nada de errado nisso. Se todos 122
lucrarem, a economia torna-se muito saudável."
Enredado na rede deste argumento, Alexandre sacudiu a cabeça como se assim se conseguisse livrar da armadilha.
"Bem.., estamos a desviar-nos", observou. "A minha dúvida é perceber em que medida baixar o IRC das empresas é socialmente justo. Parece-me correcto que elas paguem impostos, como qualquer trabalhador. Por que razão haveriam os empresários de pagar menos? Era o que mais faltava!"
"As empresas já pagam menos, meu caro", lembrou Filipe. "E existe uma boa razão para isso. Reduzir os impostos às empresas é legítimo e desejável se beneficiar o conjunto da sociedade. O que é o caso."
"Ai é? Como?"
O amigo calou-se por um instante, ponderando a melhor maneira de responder.
"O que é um empresário?"
Alexandre riu-se.
"É um tipo que anda a explorar os trabalhadores para se encher de dinheiro."
"Um empresário é uma pessoa qualquer que decide abrir uma empresa. Posso ser eu ou o Tomás ou você. Imagine que é você. Foi despedido da garagem, não arranja nenhum trabalho que lhe interesse e, desesperado, pega no dinheiro que poupou ao longo destes anos e abre um negócio. Uma fábrica de sapatos, por exemplo. Ao fazer isso vai ter de avaliar os ganhos e as perdas. De que maquinaria vai precisar e quanto custa ela? Qual a matéria-prima? Couro? Quanto custa o couro? E trabalhadores? De quantos vai precisar? De dez? Quanto terá de lhes pagar? Quanto terá de pagar à Segurança Social por cada um deles? E quanto dinheiro terá de pagar de IRC ao estado? Você faz as suas continhas e começa a perceber que assim não dá, vai ter prejuízo. A maquinaria é cara, o salário do pessoal é elevado, os impostos comem-lhe o resto."
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"Sim, com certeza que o trabalho de um empresário tem as suas dificuldades, não digo que não..."
"Repare, meu caro, se você não abrir a fábrica, o que irá acontecer? Há dez trabalhadores que vão continuar no desemprego, além de você, claro. Todos a receberem o subsídio de desemprego de um estado que já está falido. Além disso você não produz riqueza nenhuma, pelo que o fisco fica de mãos a abanar. O que ganhou o estado com isso? Nada. Só ficou a perder."
"Pois, admito."
"Ou, se mesmo assim quiser abrir a fábrica, pode fazê-lo... na República Checa. Os trabalhadores aí são mais baratos e mais qualificados. Ou na Irlanda, onde só se paga doze e meio por cento de IRC e é mais fácil despedir trabalhadores se as coisas correrem mal. Ou seja, Portugal perdeu o seu investimento e a República Checa ou a Irlanda ganharam-no. Dez trabalhadores irlandeses ficaram com o emprego, o estado português ficou com os encargos sobre os dez desempregados que você empregaria e não empregou e sem cobrar uma percentagem, mesmo que pequena, sobre os lucros que afinal você vai ter noutro país."
O passageiro do banco traseiro abanou a cabeça.
"A seguir essa lógica, a escravatura é que era boa..."
"É o que pensa, e pratica, a China comunista", observou Filipe, sublinhando a palavra comunista. "Vivemos numa economia global e estamos a competir com países que têm os seus habitantes na miséria absoluta, a trabalhar como escravos a troco de quase nada.
Não digo que desçamos a esse nível, não precisamos, mas nalguma coisa teremos de ceder."
"Os Alemães não cederam", observou Alexandre. "Vivem na mesma economia global em competição com a China e não baixaram o seu nível de vida."
"Está muitíssimo enganado", corrigiu-o Tomás, quebrando o 124
silêncio com a conversa que escutara na cela de Atenas bem presente na memória. "Em 2003 os Alemães iniciaram uma política de degradação dos salários reais e de cortes nas despesas e no estado social. É por isso que hoje a economia deles está saudável.
Adaptaram-se à competição. Além do mais, têm uma economia de bens transaccionáveis de alta tecnologia e utilizam o capital para a apoiar. Já nós, em vez de investirmos na qualificação da nossa economia transaccionável, utilizámos o capital, insisto, para fazer betão. O estado investiu em auto-estradas, as famílias em casa própria, automóveis e férias, enquanto muitas empresas têm vivido à custa do crédito que lhes tapa os buracos e financia os investimentos. Se a dívida pública portuguesa é uma catástrofe, a dívida privada é ainda pior."