Meio contorcido para encarar o companheiro de viagem que se encontrava no banco traseiro, Filipe retornou o fio da conversa.
"Deixe-me no entanto retomar o exemplo do seu projecto de uma fábrica de sapatos." Fez uma pausa teatral. "E se o estado português o ajudasse? E se o estado português lhe desse metade do dinheiro para pagar a maquinaria? E se o estado português pagasse a formação dos seus trabalhadores? E se o estado português lhe baixasse o IRC? Nesse caso você faz as suas contas outra vez e...
pimba, descobre que tem lucro!"
"Aí já posso abrir o negócio em Portugal."
"Claro! Era isso que devia ter sido feito, em vez de se estourar a massa toda no betão! Olhe o que fez a Irlanda. Em 1960 a Irlanda era o quarto país mais pobre da Europa ocidental. O quarto mais pobre!
Mas em 1994 teve um ministro das Finanças chamado Ruairi Quinn que mudou esse destino. O senhor Quinn decidiu cortar brutalmente os impostos para as empresas."
Alexandre quase saltou no banco traseiro.
"Isso é neoliberalismo, exclamou em tom de acusação, a revolta a 125
incendiar-lhe o espírito. "Foram essas ideias neoliberais que nos conduziram ao estado em que nos encontramos!"
Filipe esboçou um gesto de desagrado.
"Isso do neoliberalismo são catalogações criadas para intimidar os críticos e inibir quaisquer reformas", disse. "Na verdade o senhor Quinn era socialista." Levantou o dedo para sublinhar o ponto.
"Socialista, entendeu? Tão socialista como o chanceler alemão Gerhard Schrõder, que em 2003 reduziu os salários reais e cortou no estado social para restituir competitividade à economia alemã." Baixou o dedo. "Acontece que o pai do senhor Quinn tinha sido um bem-
-sucedido comerciante de automóveis e isso permitiu-lhe perceber como funcionava o mundo dos negócios. Então o que fez ele?
Manteve as despesas do estado sob controlo férreo e isso deu-lhe margem para a sua experiência revolucionária: baixou o IRC das empresas para doze e meio por cento."
"Neoliberalismo!"
"Não diga disparates", repreendeu-o Filipe. "O que se passou foi que o senhor Quinn tinha percebido uma coisa elementar: impostos baixos atraem investimentos altos. A aposta resultou em cheio. Os Irlandeses desataram a abrir negócios, os empresários de todo o planeta puseram-se a investir na Irlanda, o dinheiro começou a jorrar para o país em catadupa, o emprego disparou e o crescimento também. Quando Quinn subiu ao poder, o crescimento do PIB na Irlanda era de dois e meio por cento. Com a redução drástica do IRC
saltou para mais de dez por cento. Apesar de taxar menos, o estado irlandês passou a cobrar mais dinheiro e a Irlanda tornou-se um país per capita mais rico do que a Alemanha ou os Estados Unidos."
"Pois, pois", resmungou Alexandre. Franziu o sobrolho. "Não é a Irlanda que está agora em crise?"
"Por outros motivos que não têm directamente a ver com os gastos públicos, mas com o impacto da importação de produtos das 126
economias emergentes, com o crédito barato que gerou a bolha do imobiliário e sobretudo com as aventuras irresponsáveis dos seus bancos", sublinhou Filipe. "O importante no exemplo irlandês é verificar o efeito positivo que uma baixa dos impostos às empresas pode trazer à economia em geral e a importância que as empresas têm na saúde económica de um país. O problema é que existe em Portugal uma cultura antiempresarial. Os empresários são tratados como inimigos e antagonizados, penalizados por serem empresários e por procurarem o lucro. A pensar assim, o país não vai a parte nenhuma."
Alexandre mantinha-se firme.
"Os empresários são exploradores sem escrúpulos", vociferou.
"Uma classe a abater que vive à custa do suor dos trabalhadores. O
grande capital é o sugador do povo. Os grandes empresários só querem abocanhar o mais que..."
"E quem é que falou em grandes empresários?", cortou Filipe.
"Em primeiro lugar devia-se acabar com o anátema que a nossa cultura colou aos empresários. Temos maus empresários? Temos sim.
Só assim se explica, aliás, parte da gigantesca dívida privada portuguesa. Mas mesmo sendo geralmente maus, são eles que criam riqueza, não é o estado. Por outro lado, é bom lembrar que o que faz a riqueza de um país não são apenas os grandes empresários, meu caro!"
O passageiro de trás carregou as sobrancelhas, desconcertado.
"Peço desculpa? O senhor estava a defender a importância dos empresários e agora... está a contradizer-se."
"Não estou não. O que faz a riqueza de um país são sobretudo os pequenos e médios empresários, os trabalhadores que pegam no seu pé-de-meia e investem num negócio. Os pequenos e médios empresários representam noventa e nove vírgula sete por cento do tecido empresarial em Portugal. São eles que têm de ser defendidos!"
Que disparate!"
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"É o que dizem os estudos. Embora também criem emprego, as grandes empresas são destruidoras de emprego. O verdadeiro motor da economia não é o estado, são as empresas, e em particular as pequenas e médias empresas. Cerca de setenta por cento da criação de emprego depende delas.
Além do mais, elas são responsáveis por quase metade das nossas exportações: as pequenas fábricas de sapatos de luxo em São Pedro do Sul, as pequenas fábricas de têxteis do Vale do Ave, os produtores de vinho, os produtores de azeite, os restaurantes e as lojas e as gelatarias que servem os turistas no Algarve. Ajudem-nas e ajudar-se-
-á a economia. Mas o que se fez em Portugal? Os governos, além de engordarem o estado e estourarem o dinheiro no betão, só ajudaram as grandes empresas, com quem estabeleceram aliás relações de cumplicidade, compadrio, proteccionismo e trocas de favores e influência." Desenhou um "0" com os dedos. "Para as pequenas e médias empresas não foi nada. Zero. Qual o resultado dessa brilhante política? Acabámos na bancarrota!"
"Tudo bem", admitiu Alexandre. "Mas os grandes investimentos do estado ajudam a economia..."
"Se assim é, porque não ajudaram? O estado português passou os últimos dez anos, até ao colapso da economia, a despejar dezenas de milhares de milhões de euros na política do betão, fazendo obra pelo país inteiro. A crer nessa tese, o PIB do país deveria ter disparado aí uns sete por cento, não lhe parece?"
"Bem... sim."
"Pois a taxa média de crescimento de Portugal nos dez anos que culminaram com a chegada do FMI, ou seja, de 2001 a 2011, foi inferior a um por cento! Mais exactamente zero vírgula três por cento."
O jovem passageiro arregalou os olhos, atónito.
"Zero vírgula três?"
Filipe abriu os braços, como se tivesse acabado de fazer uma 128
demonstração.
"É para que veja, meu caro. Ao contrário do que foi pro-pagandeado, o investimento do estado criou pouquíssimo ou nenhum crescimento económico. Grande parte do dinheiro foi gasta em obras que nem sequer geram metade da riqueza necessária para pagar as amortizações e os juros."