Voltaram à cozinha e viram-se rodeados por três vultos, como lobos a talharem-lhes o caminho. A fechadura cedera e os três 13
desconhecidos cercaram-nos, dois à frente e um atrás, os semblantes carregados, as posturas ameaçadoras.
"Quem são os senhores?", perguntou Hervé, tentando imprimir autoridade à voz. "Que fazem aqui?"
Dois dos desconhecidos deram um passo em frente e as presas sentiram os seus braços poderosos envolverem-lhes o tronco e prenderem-lhes os braços, impossibilitando-lhes os movimentos.
Tentaram libertar-se do aperto, mas os braços dos agressores eram demasiado fortes e o mais que conseguiram foi espernear. Não adiantava.
Mudando de táctica, o parisiense acalmou-se e encarou o desconhecido que ficara a observá-los, evidentemente o chefe da quadrilha. Pensou em negociar, mas apercebeu-se de que se tratava do homem dos calções e pólo azul do Yacht Club do Mónaco, o "turista"
que avistara umas horas antes na Promenade des Anglais e que sorriu de forma estranha no momento em que se tornou evidente que os dois ocupantes do apartamento não tinham escapatória.
"Xeque-mate."
As cordas que amarravam Hervé à cadeira haviam sido estreitadas com tal força que ele já sentia as mãos dormentes. Olhou para Éric e percebeu que o seu companheiro mais velho não se encontrava melhor; na verdade apresentava até a face mais pálida do que era normal, sinal de que as cordas que o atavam estavam tão apertadas que o sangue tinha até dificuldade em subir à cabeça.
Passeou os olhos pelo espaço em redor e registou o caos em que se havia transformado a sala de estar. Não conseguia destrinçar o que se passava nas restantes divisões do apartamento, mas a barulheira era elucidativa e não lhe parecia difícil imaginar o que ali acontecia. Os intrusos esventravam os compartimentos e revistavam tudo o que havia para ver, espalhando pelo soalho roupas e livros e papéis e objectos de decoração e tudo o mais que encontravam nas gavetas e nas estantes.
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Ao fim de meia hora, o homem dos calções e do pólo azul regressou à sala de estar e abeirou-se de Hervé.
"O DVD?"
O cativo abanou a cabeça.
"Qual DVD? Não sei o que..."
Duas estaladas, seguidas de um violento pontapé numa face, interromperam a resposta.
"Não te armes em parvo!", vociferou o agressor num tom carregado de ameaça. "Onde está o DVD?"
Hervé tentou encolher-se para se defender, mas estava demasiado bem amarrado e o mais que conseguiu foi virar a cabeça.
Sentia a face incendiada e o nariz a latejar, mas só percebeu que sangrava quando viu pingos vermelhos salpicarem a madeira do chão em sucessivos círculos imperfeitos.
"Eu... não sei...", balbuciou, "não sei do que... do que está o senhor a falar."
Apanhou com um novo pontapé na cara que lhe deve ter rebentado o lábio inferior, pois sentiu aí um pulsar intenso e doloroso.
"Fala, idiota! O DVD?"
O prisioneiro tentou responder, mas as primeiras palavras afogaram-se na garganta e não lhe saíram. Respirou fundo e voltou a concentrar-se.
"Por favor, pare com isso", murmurou, ofegante. "Não sei de nenhum DVD."
O homem dos calções fitou-o durante uns longos cinco segundos, como se tentasse decidir se o indivíduo amarrado diante dele dizia a verdade ou mentia, e, talvez convencido, ou se calhar apenas mudando de táctica, acabou por se dirigir ao segundo prisioneiro. Encarou Éric de pernas abertas e olhar carrancudo, como um toureiro a preparar-se para o embate.
"O DVD?"
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Foi a vez de o cativo mais velho se encolher.
"Não sei."
O homem dos calções pontapeou sucessivamente o segundo prisioneiro, empregando ainda maior selvajaria do que quando agredira Hervé. Éric tinha todo o tronco atado às costas da cadeira e a cabeça absolutamente desprotegida. Quando as agressões pararam, a cara do segundo prisioneiro cobrira-se de sangue e de hematomas, a testa tão inchada da parte direita que quase lhe tapava o olho.
"O DVD?", insistiu o interrogador. "Onde está a porra do DVD?"
Mas a cabeça de Éric estava caída, como a de uma marioneta abandonada pelo manipulador, e o prisioneiro parecia à beira de perder a consciência; era evidente que a agressão o tinha deixado incapaz de responder. O
homem dos calções praguejou de frustração e, com gestos repentinos, foi buscar um computador e começou a montá-lo sobre a mesa que ocupava o centro da sala.
A ligação visual através do Skype levou dez minutos a ser estabelecida. Hervé passou esse tempo a estudar maneiras de escapar daquela armadilha, mas depressa percebeu que não havia fuga.
Estava demasiado bem amarrado e, mesmo que se conseguisse libertar, teria de enfrentar os cinco desconhecidos, três deles muito corpulentos. A verdade é que se encontravam à mercê daqueles homens.
O ecrã do computador animou-se e um vulto difuso apareceu por fim na imagem. O agressor fez uma vénia.
"Poderoso Magus, preciso da tua preciosa orientação."
Hervé tentou destrinçar as feições do homem que aparecera em linha, mas o ecrã estava de lado e só lhe ouvia a voz.
"Então, Balam?", perguntou o vulto. "Que se passa? Apanhaste Dupond e Dupont?"
"Sim, estão aqui."
"E o DVD? Já o tens?"
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"Não."
O homem dos calções e do pólo azul respondeu em voz baixa, quase a medo; sabia que tinha razões para isso.
"Tu garantiste-me que me trazias o DVD!", rosnou o homem no Skype. "Não te atrevas a quebrar a promessa!..."
"Não, poderoso Magus, fique descansado", apressou-se Balam a responder, com gotas de suor a descerem em ziguezague pela testa.
Hesitou, na dúvida sobre como expor o problema. "É que... já os interroguei e eles dizem que não sabem do que estou a falar. Será possível?"
"Claro que não", retorquiu Magus. "Os tipos estão a mentir. Tens de os apertar melhor."
Balam desviou o olhar para Éric, que permanecia atordoado depois do ataque selvagem a que fora submetido, e respirou fundo.
"Só se for o mais novo", constatou. "O velhote já não está em condições de falar."
O vulto no ecrã emudeceu por uns instantes, decerto a ponderar o melhor caminho.
"Elimina um", sentenciou num tom gélido. "Isso fará o outro cantar que nem um canário."
Sem hesitar, Balam endireitou-se e tirou uma navalha do bolso traseiro dos calções. Hervé observou-o com o horror a crescer-lhe nos olhos, receando que a ordem lhe dissesse respeito a si. Em vez disso o agressor aproximou-se de Éric. Pegou-lhe pelo cabelo grisalho de modo a endireitar-lhe a cabeça e, com um gesto repentino, passou-lhe a lâmina pelo pescoço e o sangue começou a jorrar em golfadas. O
parisiense virou a cara e fechou os olhos, mas isso não o impediu de ouvir o sangue a borbulhar do pescoço e o espernear impotente das pernas de Éric durante alguns segundos até ao estertor final.
Quando tudo ficou de novo quieto, Hervé sentiu o agressor aproximar-se dele.
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"É a tua última oportunidade", sussurrou Balam, quase como se segredasse. "Onde está o DVD?"
A imagem e o som da brutal execução de Éric ecoavam na mente do prisioneiro no momento em que, a medo, levantou os olhos assustados e encarou o verdugo. Balam tinha as mãos ensanguentas e manchas encarnadas a sujarem-lhe o pólo azul do Yacht Club do Mónaco. A navalha suja dançava-lhe na ponta dos dedos.