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"Sabe, professor Noronha..."
"Chame-me Tomás."
Ela hesitou e enrubesceu, mas acatou a sugestão.
"Muito bem... Tomás." Fitou-o com os seus grandes olhos castanho-claros, como se avaliasse a reacção dele à forma como ela pronunciara o seu nome. Depois fez uma careta, a indicar que tinha algo desagradável a dizer. "Sabe, Tomás, telefonei-lhe porque apareceu agora um problema aborrecido que queria discutir consigo.
Não é exclusivo da sua mãe, note bem, mas..."
"Que se passa?", perguntou ele, levemente alarmado com o embaraço que lhe lia nos olhos. "Sucedeu alguma coisa?"
Maria
Flor
suspirou,
claramente
incomodada
com
as
suas
responsabilidades nesse momento.
"É um problema de... de dinheiro."
A palavra surpreendeu Tomás.
"Dinheiro?", estranhou. "Dinheiro como? Vocês recebem na íntegra a reforma dela, não é verdade?"
A directora do lar engoliu em seco.
"Com certeza", assentiu. "O problema é que... a reforma foi cortada, lembra-se?"
"Como?"
"Então não sabe?", admirou-se ela. "Por causa da crise, além de reduzir salários e eliminar subsídios o governo fez cortes nas pensões.
Ela levou uma talhada de quase dez por cento na reforma, veja lá."
Vacilou. "Ela não. Nós. Passámos a receber menos dinheiro, mas temos os mesmos gastos." Abanou a cabeça e suspirou num lamento.
"Ah, é um problema! Como sabe, não sou dona do lar, apenas a directora. Os proprietários já me chamaram a atenção para a questão e... enfim, temos de resolver isto. Há várias pessoas aqui que estão na mesma situação, não é só a sua mãe, pelo que temos pedido às famílias que... que reponham a parte em falta."
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Maria Flor desviou os olhos quando concluiu a sua exposição, evidentemente embaraçada com o que era forçada a pedir.
"Eu daria o dinheiro de muito bom grado", devolveu Tomás, desconcertado com a situação com a qual era confrontado. "O
problema é que perdi o emprego."
A sua interlocutora levou a mão à boca.
"Ah!", exclamou, chocada. "Não me diga!"
"É verdade", confirmou ele. "Também por causa da crise a minha faculdade teve de começar a dispensar os professores que não são do quadro. Fui apanhado na varridela.
Fez-se um súbito silêncio enquanto a directora do lar digeria a notícia e as suas implicações.
"Quer dizer que... que não tem modo de cobrir o dinheiro em falta?"
A pergunta ia direita ao centro do problema e Tomás teve de respirar fundo antes de responder.
"Bem, disponho de algum dinheiro amealhado", disse. "Além do mais, estou agora a receber do fundo de desemprego, claro. Isso dá-me alguma margem."
Maria Flor estudou-o com atenção.
"Sem querer ser indiscreta, esse dinheiro amealhado é coisa que se veja? "
"Não muito, infelizmente. Nem sei se chegará para aguentar a minha mãe muito tempo aqui."
"Então o que vai fazer?"
Tomás respirou fundo.
"Pois, não sei. A verdade é que não posso deixar que a ponham na rua, isso nem pensar. O que tem de ser tem muita força. Preciso de arranjar trabalho, nem que tenha de ir para as obras."
A sua interlocutora soergueu as sobrancelhas.
"Quais obras? Não vê que a construção civil está parada?"
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"Era uma forma de expressão", explicou ele. "O que quero dizer é que farei tudo o que for preciso para resolver o problema."
A directora do lar ficou por momentos a fitá-lo, os olhos presos nele, evidentemente a matutar no problema. Depois respirou fundo e esboçou um sorriso fraco, mas suficientemente caloroso para pelo menos lhe aquecer o coração. De seguida e sorriso desfez-se.
"Isto é uma chatice", desabafou com desânimo. "Os proprietários do lar não querem nem um tostão em falta. Como as pensões dos reformados estão a ser reduzidas, as famílias têm mesmo de entrar com a diferença. Os Proprietários disseram-me que comunicasse às famílias que têm de repor a diferença até... até quinta-feira à noite."
Tomás fez um gesto de desalento; como era terça-feira, seria daí a dois dias.
"Quinta-feira? Veja se me dão mais algum tempo..."
Maria Flor voltou a pousar a mão no ombro dele, derramando a doçura quente do seu olhar sobre a expressão preocupada do visitante.
"Posso falar com eles, mas não vão aceitar..."
O historiador suspirou, resignado.
"Está bem, terei de avançar com as minhas poupanças", rendeu-
-se. "Quando chegar a Lisboa vou pedir ao banco que faça uma transferência, não se apoquente."
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XVIII
Uma vez dentro da rede interna do banco, o acesso às gravações das câmaras de videovigilância daquela sucursal em particular revelou-
-se relativamente simples. Depois de desencriptar a palavra-chave, Decarabia inseriu-a no sistema e entrou na página de segurança.
Procurou a ligação à sucursal e entrou.
"Então vamos lá a ver!...", disse para si próprio, entrelaçando os dedos e fazendo-os estalar pelas articulações enquanto contemplava a informação que enchia o ecrã. "O primeiro levantamento foi feito pouco depois das três e meia da tarde de ontem..." Passeou os olhos pelo banco de imagens e procurou o registo da câmara que gravara as operações àquela hora. "Ora bem... ora bem... o que queremos é o que a câmara da caixa multibanco registou. Ora deixa cá ver."
Clicou no arquivo da câmara da caixa e escolheu as imagens gravadas entre as três e as quatro da tarde de segunda-feira. Uma imagem vídeo encheu de imediato o ecrã.
Via-se um plano largo que mostrava o passeio e a rua, com circulação normal de peões e viaturas de um lado para o outro. De repente um peão dirigiu-se à câmara, inseriu um cartão multibanco na ranhura da caixa, digitou o código de acesso e as instruções, retirou o dinheiro e o cartão e abalou dali, os bolsos mais aconchegados.
"Vamos lá, vamos lá!...", impacientou-se o intruso. "Quando é que aparece o nosso homem?"
O vídeo de segurança continuou a rolar no ecrã, mostrando cenas 141
repetitivas. O passeio, pessoas a passarem para a esquerda e para a direita, a rua, automóveis e autocarros e motos de um lado para o outro, um cliente que se dirigia à máquina, levantava o dinheiro e se ia embora, depois mais passeio e mais rua, outro cliente, e assim sucessivamente. Tudo muito monótono.
Decarabia bocejou.
"Shit! Isto anda ou não anda?"
O hacker mantinha um olho na imagem e o outro preso à contagem dos minutos.
15:23:15.
Ainda mais doze minutos de espera! Se pudesse, faria fast forward para chegar rapidamente à hora que desejava, mas o dispositivo que o permitia não estava disponível no ecrã.
Decididamente a rede interna do banco ainda tinha coisas a melhorar.
Foi buscar um café. Não quis estar ausente muito tempo, não fosse o seu alvo aparecer na imagem antes do previsto, pelo que depressa voltou ao lugar. A imagem parecia normal e verificou de novo a contagem do relógio.
15:26:47.
Mais do mesmo. Passeio, rua, transeuntes, automóveis, clientes. E