tudo a passar incrivelmente devagar, dava a impressão de que o tempo fazia de propósito para o irritar. Estudou a imagem que enchia o ecrã.
Felizmente a câmara da caixa multibanco parecia usar uma grande angular, pensou; isso permitia-lhe ter uma visão ampla do que se passava naquele espaço e estudar cada uma das pessoas que por ali deambulavam, da origem ao destino.
O olhar baixou para o relógio.
15:32:03
Três minutos. O tédio desapareceu, substituído por um assomo de concentração. A todo o instante o seu alvo iria aparecer na 142
imagem. Viria da esquerda ou da direita? Estaria já acompanhado?
Decarabia fazia votos ardentes de que sim; isso poupar-lhe-ia imenso esforço. Não que temesse o trabalho; o que se passava é que a rapidez era essencial.
15:34:11.
Um minuto. Varreu o ecrã com atenção redobrada, detendo-
-se no rosto de cada pessoa que passava. Segundos depois viu um homem aproximar-se do ecrã, o cabelo em desalinho, a barba por fazer, o olhar cansado, a ansiedade estampada na face.
"Ah, cabrão!", exclamou. "Apanhei-te!"
Era Filipe Madureira.
Viu-o inserir o cartão na ranhura, digitar o código, pedir a quantia, ver a recusa no ecrã e a face contorcer-se de frustração e gritar algo que não se percebia. A gravação não tinha som mas também não era preciso, era evidente que insultava o banco ou quem quer que lhe tinha interditado o acesso ao seu próprio dinheiro.
"Estás à rasca, hem?", sorriu Decarabia, divertido com a reacção que via na imagem. "Pois isso não é nada comparado com o que te espera, grande camelo!..."
A gravação mostrou Filipe a guardar o cartão, contrariado, e a fazer meia volta. O hacker seguiu-lhe os movimentos com grande atenção. O seu alvo afastou-se para a direita, tapou a cabeça com um capuz de chuva, encostou-se a uma tília e consultou o relógio, como se estivesse a passar o tempo. Com o olhar, porém, pôs-se a varrer todo o espaço em redor, procurando à direita e à esquerda, sem cessar. Volta e meia baixava a cabeça, umas vezes para descansar e outras para olhar de novo para o relógio, mas logo a seguir e voltava a espreitar em volta dele.
Este comportamento arrancou um sorriso satisfeito a Decarabia.
"Estás à espera de alguém..."
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O ficheiro de vídeo correspondente ao período entre as três e as quatro da tarde esgotou-se sem que houvesse novidade. O intruso clicou no da hora seguinte e deixou correr as imagens. Filipe permanecia à sombra da tília, evidentemente a aguardar num misto de paciência e impaciência, a mesma mistura que nesse instante assaltava Decarabia. Mas o que poderia fazer? Tinha de ver o vídeo em tempo real para captar o momento crucial, aquele em que terminava a espera do seu alvo e tudo se decidia; desejava ardentemente que as imagens fossem elucidativas e lhe dessem a pista de que precisava.
16:08:28.
A espera prolongou-se. Transeuntes, automóveis, o alvo encostado à árvore, os clientes que se dirigiam sucessivamente ao multibanco para levantar dinheiro ou fazer outras operações. Tudo se repetia com monotonia inenarrável, extraindo do intruso bocejos sucessivos e mais café para os combater.
16:27:03.
De repente viu Filipe sair disparado do lugar onde estava e dirigir-se em passo rápido a um homem que acabava de saltar de um autocarro. O seu alvo puxou o braço do desconhecido, este voltou a cara e, após uma hesitação, reconheceu a pessoa que o interpelara e começou a falar com ela. Decarabia clicou sucessivamente num dispositivo para registar a imagem no ecrã. Viu os dois homens darem meia volta e dirigirem-se à porta de um edifício de apartamentos. O
desconhecido meteu uma chave na fechadura, a porta abriu-se e ambos desapareceram para lá dela.
"Apanhei-te!", exultou, pondo-se de pé para descontrair depois da pasmaceira da longa espera. "Apanhei-te, cabrão!"
Fora melhor do que alguma vez se atrevera a esperar. Não só registara a imagem da pessoa que o seu alvo contactara como conseguira ver para onde ambos se dirigiram, decerto o lugar onde o homem que procurava se escondia. Que mais poderia desejar?
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Pousou o olhar no ecrã do seu computador e estudou as imagens que gravara no momento em que Filipe Madureira interpelara o desconhecido. Ampliou o segmento referente ao rosto deste e estudou-o com cuidado.
"Quem és tu?", perguntou num murmúrio, os olhos fixos naquela cara. "Quem és tu?"
Não tinha dúvidas de que em breve saberia a resposta.
145
XIX
Depois de parar à esquina da garagem para apanhar Alexandre, o carro esquadrinhou as ruas de Coimbra e virou na curva onde uma tabuleta branca com letras e linhas azuis indicava a auto-estrada e a direcção de Lisboa. Tomás ia calado ao volante, a atenção concentrada na condução, a mente a passar em revista o que na última hora acontecera no lar onde a mãe se encontrava.
"Gaja gira, hem?"
A pergunta de Filipe, feita num tom provocador, quebrou o silêncio no interior do Volkswagen.
"Quem?"
O amigo soltou uma gargalhada.
"Não te faças despercebido, Casanova!", atirou o amigo, usando a velha alcunha dos tempos do liceu. "Conheço-te de ginjeira."
O condutor não tirou os olhos da estrada.
"Estás a falar de quê?"
"Da senhora directora, de quem haveria de ser?" Estreitou as pálpebras, como se puxasse pela memória. "Como se chama ela?
Maria... Maria..." O olhar acendeu-se. "Flor, não é? Maria Flor."
Arqueou as sobrancelhas para cima e para baixo, peguilhento. "Uma brasa!"
"Oh! Não digas disparates!"
"Aqueles olhinhos de chocolate, aqueles lábios suculentos, aquele sorriso de sansardoninha... ui, a miúda estava mesmo a pedi-las!" Deu-lhe um empurrão amigável no ombro. "Ou me engano muito ou em breve vais fazer-te ao piso. Estou mesmo a ver o filme..."
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"Cala-te, pá!"
Filipe voltou a rir-se, divertido com a reacção do velho companheiro de tropelias do liceu. Sabia que tocara num ponto fraco e não tencionava largá-lo tão cedo.
"Diz lá que não achas a moça uma brasa?", atirou, sempre a provocar. "Hã? Ora diz lá, se és capaz..."
Tomás manteve os olhos fixos na estrada, sem sorrir, as mãos agarradas com força ao volante, o semblante de quem ia concentrado; não se sentia com vontade de brincar.
"Estou preocup ado com a minha mãe", acabou por desabafar, mudando o rumo à conversa. "Cortaram-lhe a pensão e estou no desemprego. Ou seja, há menos dinheiro e preciso de pagar o lar.
Vou ter de mexer nas minhas poupanças, que já não são muitas.
Como é que um gajo se safa?"
A pergunta não obteve resposta imediata. Filipe endireitou-se no seu lugar, o tema era sério, incompatível com o registo de graçola inofensiva com que falara da directora do lar. O carro entrou na auto-