"Tem calma", disselhe. "O polícia já o..."
Escutou nesse instante um novo estampido vindo lá de trás e voltou-se para perceber o que acontecera. Viu o polícia estendido no chão de barriga para o ar, a nuca desfeita numa massa de sangue e massa encefálica, e o desconhecido a correr de novo na direcção deles com a pistola fumegante na mão.
"O gajo... o gajo matou-o!"
Filipe voltou a puxá-lo, a voz tingida de medo. "Foge, caraças!
Foge!"
Recomeçaram a correr e agora Tomás tinha a perfeita convicção de que corria para salvar a vida. Não só o desconhecido o alvejara como, sobretudo, abatera um polícia a sangue-frio no meio da rua e à luz do dia. Quem fazia uma coisa dessas, sabia, faria muito mais. A 168
ameaça era séria.
Várias pessoas vinham em sentido contrário e viu-se forçado a ziguezaguear entre elas. No instante em que o fez sentiu um novo zumbido perto da orelha e escutou outro estampido. Fora mais uma vez alvejado. Em boa hora mudara de direcção, caso contrário com toda a probabilidade teria sido atingido. Estranhou momentaneamente o novo disparo na sua direcção; dava a impressão de que ele próprio era o verdadeiro alvo do perseguidor, não o seu amigo, mas o momento não lhe parecia adequado para reflectir, apenas para correr e escapar-se.
Atirou um novo olhar para trás. O desconhecido em breve apanhá-los-ia, não só porque parecia muito ágil mas também porque Filipe já dava as últimas; o amigo estava ofegante, tinha os pulmões exangues e perdia rapidamente o fôlego. Só um golpe de asa lhe permitiria escapar com vida.
Olhou para a rua, desesperado, à procura de um táxi. O trânsito estava imobilizado por causa de um semáforo vermelho e não havia qualquer táxi livre à vista. Para compensar, viu um jovem sentado numa Kawasaki encarnada de aspecto potente, com rodas grossas e dois grandes tubos de escape.
Estava ali o golpe de asa.
"Anda daí!"
Agarrou em Filipe e puxou-o na direcção da moto. Quando se abeirou dela desferiu um murro inesperado nos rins do motociclista, que se contorceu com dores, e fê-lo saltar da Kawasaki. Ajudou o amigo a montar, saltou para a posição de piloto e arrancou com um rugido furioso e tanta fúria que quase empinou a moto. Controlou-a de imediato e, em ziguezague entre os automóveis, passou o semáforo vermelho entre um coro desordenado de buzinadelas.
"Ufa!", bufou. "Já nos safámos!"
Espreitou brevemente para trás, de modo a verificar a posição 169
do perseguidor, e vislumbrou o vulto negro junto a outro motociclista parado à espera do verde. Seria possível que ele continuasse a perseguição? Precisava de se certificar, mas não tinha modo de o fazer, a condução da moto requeria toda a sua atenção.
"Que se passa?", quis saber Filipe, gritando para se fazer ouvir sobre o ronco da Kawasaki e do vento. "Está tudo bem?"
"Vê o que o tipo está a fazer!"
Sentiu o amigo voltar-se para trás e aguardou as novidades. Elas não tardaram.
"O gajo vem atrás de nós!", berrou Filipe, de novo o pânico a dominar-lhe a voz. "Mais depressa!"
170
XXII
Não era fácil acelerar pelas ruas de Lisboa, mesmo estando elas menos congestionadas do que no passado, até porque havia já alguns anos que Tomás não pegava numa moto e sentia que lhe faltava prática. Apesar disso carregou um pouco mais no acelerador e sentiu que ganhava confiança e destreza a cada minuto que passava; era um pouco como andar de bicicleta, depois de se aprender nunca mais se esquecia.
"Então?", atirou para trás. "Já o despistámos?"
"Não. Tens de ir ainda mais depressa!"
Mais depressa?, interrogou-se Tomás. Como? Mais veloz do que aquilo parecia-lhe impossível, ou pelo menos imprudente. Sentia o vento esbofetear-lhe a cara e esforçava-se por encontrar um compromisso entre velocidade e agilidade, imprescindível para manter um mínimo de segurança, mas o facto é que a Kawasaki levava duas pessoas e isso, dando um peso extra ao veículo, roubava-lhe equilíbrio e atrasava-os alguns metros preciosos. Como poderia ser mais rápido?
"Mais depressa!"
A voz de Filipe transmitia urgência e Tomás percebeu que a fuga não se poderia arrastar até que um deles ficasse sem combustível. Isso dar-lhe-ia uma hipótese em duas de ser apanhado; não podia entregar-se a esse tipo de probabilidades. Aliás, antes disso seria decerto apanhado; o outro vinha só na moto e tinha assim maior liberdade de movimento. Precisava de um plano. Mas qual? O que poderia fazer? Por mais que carregasse no pedal, o perseguidor não desgrudava; parecia uma carraça.
171
Aceleravam pela Avenida da Índia e percebeu que se aproximavam do Cais do Sodré. Como por encanto, ou mais provavelmente devido à pressão das circunstâncias, uma ideia começou a formar-se na sua mente.
Um plano.
"O tipo que está atrás de nós", atirou para o companheiro nas suas costas, "é português ou vive em Portugal?"
"Quem? O pistoleiro?"
"Sim. Ele é de cá?"
"Não, claro que não. É de certeza um estrangeiro. Porquê?"
Tomás não respondeu. Desrespeitou o semáforo vermelho situado diante do Cais do Sodré, evitou o trânsito que vinha do outro lado e meteu pela Ribeira das Naus até ao Terreiro do Paço, confiante de que o arrojo da manobra lhe tinha conquistado alguns segundos valiosos.
Olhou para a direita e apercebeu-se de que um cacilheiro estava colado ao cais flutuante e se preparava para iniciar a travessia do Tejo rumo à outra banda. Saltou com a moto para o passeio à frente do Cais das Colunas, acelerou até ao cais dos cacilheiros travou com um guincho diante do hangar de cal branca e suja, a roda traseira a girar em semicírculo como numa prova de motocross.
"Sai!", ordenou, empurrando apressadamente Filipe para fora da mota.
"Espera por mim!"
O empurrão foi tão forte que o amigo caiu no chão.
"O que estás a fazer?"
Mais uma vez Tomás não lhe deu resposta, não porque não o quisesse fazer, mas porque não havia tempo. Rodou o manípulo do acelerador e arrancou com um novo rugido entre uma nuvem arroxeada que os tubos de escape cromados da Kawasaki exalaram num bafo, refazendo o caminho por onde viera.
O perseguidor apareceu diante dele.
"Agora nós", rosnou entre dentes. "Vamos ver se gostas de passar de 172
caçador a caça!..."
Acelerou na direcção do desconhecido e sentiu-o hesitar, surpreendido e desconcertado com a mudança de táctica da sua presa, agora transformada em predador. Tudo se passou tão depressa que o pistoleiro não teve tempo de agir. Tomás carregou sobre ele como uma bala e, no último instante, virou o guiador e, rodando no eixo, embateu com a roda traseira na moto do outro.
Por instantes o mundo deixou de fazer sentido, o alcatrão em cima e o céu azul em baixo, num momento estava sobre a Kawasaki e na fracção de segundo a seguir já rebolava pelo chão, projectado pelo impacto do embate. Rolou sobre si mesmo e ficou imóvel sobre o passeio, embalado pelos grasnidos melancólicos das gaivotas que descansavam sobre as colunas imersas na água.