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"Por favor", gemeu, as lágrimas a começarem a rolar-lhe pela face inchada e manchada de sangue e transpiração, "não me mate!..."

O agressor inclinou-se e fitou-o com intensidade, como se a paciência tivesse chegado ao limite.

"O DVD?"

Hervé percebeu que não dispunha de qualquer alternativa. Se queria sobreviver, tinha de cooperar. Uma voz dizia-lhe na cabeça que, fosse qual fosse a sua decisão, o destino estava traçado; ia ser morto. Mas uma esperança cega calou essa voz interior e a vontade de viver revelou-se tão grande que o fez acreditar que poderia escapar se desse ao agressor o que ele viera buscar.

"Não o temos", murmurou, pela primeira vez a admitir implicitamente que sabia bem o que os desconhecidos procuravam.

"O DVD está com... com outra pessoa." Balam arreganhou os lábios e exibiu os dentes.

"Quem?"

A pergunta foi feita tão próximo que Hervé sentiu o hálito a vinho do

carrasco.

O

coração

do

prisioneiro

ribombava-lhe

descontroladamente no peito e os lábios entumecidos pelas pancadas tremiam-lhe de medo e dor.

"O português", confessou, a arfar de medo. "É o português... é ele que tem esse maldito DVD."

Consciente de que o homem à sua mercê dizia a verdade e revelara enfim tudo o que sabia, Balam endireitou-se, pousou-lhe a 18

mão sobre a cabeça como se o afagasse e, com súbita brutalidade, puxou-o pelos cabelos. Com a ponta da navalha suja ainda a cintilar, fez um movimento rápido e degolou-o como havia degolado Éric dois minutos antes.

19

I

O cheiro a mofo e a pó das antiguidades era o suficiente para manter qualquer pessoa de bom senso o mais afastada possível do armazém dos documentos raros, mas o odor bafiento dos papéis a desfazerem-se com os séculos era para Tomás Noronha o melhor dos bálsamos. Com as mãos enlu-vadas, como requerido pelo protocolo quando se manuseiam manuscritos tão antigos, o historiador português pegou no rolo de pergaminho bolorento e estendeu-o sobre o estirador. Aproximou a lâmpada da superfície amarelecida e iluminou as linhas misteriosas que percorriam o velho documento como uma cifra arcana; parecia vagamente árabe mas era algo diferente, infinitamente mais enigmático e difícil de decifrar.

"Que alfabeto é esse, professor?"

A pergunta foi feita pelo homem que lhe entregara o rolo, o responsável pela equipa de arqueólogos que dias antes o chamara a Atenas e o arrastara até àquela cave sombria do Museu Arqueológico.

"Avéstico", respondeu o historiador português, os olhos fascinados a deslizarem pelas palavras que enchiam o rolo. "A língua é a das escrituras do zoroastrismo, usada na Pérsia até ao século VI antes de Cristo."

"Então confirma que esse texto é mesmo dos Avestá?"

Absorto no texto diante dele, Tomás não respondeu; na verdade nem ouviu a pergunta, tão concentrado estava nas palavras que devorava com fascínio incontido. Nunca imaginara vir um dia a estar diante de um manuscrito daqueles. E a sua surpresa ia aumentando à 20

medida que decifrava as palavras ali gravadas havia mais de dois milénios, como se o copista da antiguidade as tivesse escrito especificamente para ele. Parecia incrível que uma descoberta de tal magnitude lhe viesse cair nas mãos daquela maneira.

"Diga-me, professor Markopoulou, onde foi que vocês encontraram isto?"

"Nas ruínas da Biblioteca de Pantainos", devolveu o arqueólogo. "Ali na zona da ágora."

"Isso já vocês me disseram quando me convidaram a vir cá", observou sem desviar a atenção do pergaminho decrépito, quase como se tivesse medo de que ele desaparecesse. "Mas onde exactamente?"

"Na escavação da parte da biblioteca junto à Porta de Atena.

Demos com uma câmara subterrânea totalmente protegida da humidade.

Era aí que os rolos estavam guardados."

Tomás não tirava os olhos do manuscrito; o seu conteúdo era demasiado fascinante, deixara-o hipnotizado. Mesmo que quisesse, não seria capaz de afastar dali o olhar. E quem o poderia censurar? Não era aquilo o sonho de qualquer historiador? Parecia impossível um documento tão antigo ter sobrevivido tanto tempo nas condições de humidade típicas da Europa. Se fosse no Médio Oriente, isso não o surpreenderia; as descobertas de Qumran e de Nag Hammadi constituíam a prova de que os climas secos de Israel e do Egipto eram os mais adequados para a preservação de manuscritos antigos. Mas... a Grécia?

"Este texto é impressionante", murmurou, assombrado.

"Verdadeiramente impressionante!"

O arqueólogo grego que lhe fazia companhia aproximou mais a cabeça para contemplar o rolo aberto no estirador, como se só o facto de o olhar lhe permitisse arrancar do texto os seus segredos.

"São mesmo Os Avestá?", perguntou de novo. "Confirma-se, 21

professor?"

Tomás assentiu com um suave movimento afirmativo da cabeça.

"São os Avestá, são", anuiu. "Mais exactamente o Gathas, o livro dos dezassete hinos que se pensa terem sido escritos pela mão do próprio Zoroastro."

O professor Markopoulou indicou o rolo bafiento cujas palavras misteriosas a luz amarelada da lâmpada acariciava com um hálito quente, resgatando o texto da treva que durante milénios o abrigara da curiosidade humana.

O historiador português aproximou o olhar de uma palavra sem as últimas letras, substituídas por um pequeno buraco cavado pelo tempo e talvez aberto pelas traças, num esforço para lhe extrair o sentido que o furo escondera.

"É um trecho sobre Angra Manyu."

"Quem é esse?"

Pela primeira vez, Tomás desviou a atenção do manuscrito e encarou o seu colega com um sorriso que as sombras da cave tornaram vagamente sinistro, como se a atmosfera daquele lugar lúgubre fosse a mais adequada para o tema que o texto invocava.

"O Diabo."

Ao ouvir o nome maldito, o arqueólogo abriu muito os olhos e recuou instintivamente, quase assustado; parecia recear o próprio manuscrito.

"Perdão?"

O português passou a palma da mão por cima do rolo aberto no estirador e redigido no alfabeto avéstico, como se o quisesse acariciar.

"Este trecho do Gathas descreve-nos o aparecimento de Angra Manyu", revelou, a voz abafada pelo ambiente opressivo da cave escura. "Sabe, o zoroastrismo foi a primeira religião monoteísta. O

judaísmo, o cristianismo e o islão vieram beber ao zoroastrismo, que nasceu na antiga Pérsia. Os textos pré-zoroastrianos falam na vinda 22

de Mitra, que nasceria numa gruta, evento que seria assinalado por uma estrela."