O exame radiológico, contudo, nada acusou de relevante; os ossos estavam intactos e as lesões eram superficiais. Mesmo assim passou pela enfermaria para desinfectar as feridas, em particular as dos cotovelos, e para lhe porem uns pensos. Depois ainda teve uma consulta com o médico e ao sair uma enfermeira passou-lhe para a mão um papel oficial com as armas da PSP.
"É a convocatória da polícia", indicou ela. "Convém dar um salto à esquadra para prestar declarações e explicar o que aconteceu."
Ao sair do hospital com o envelope do dossiê de Filipe debaixo do braço, Tomás ponderou o que fazer. Ainda admitiu voltar ao seu apartamento, mas depressa pôs a ideia de lado. Nem pensar. Com toda a probabilidade tinha a casa sob vigilância; ir para lá seria meter-
-se direitinho na boca do lobo. Assim sendo, para onde iria? Os hotéis estavam fora de questão, eram demasiado caros; além disso, quem quer que estivesse atrás do famoso DVD poderia ligar para todos os 187
hotéis de Lisboa e arredores a perguntar por um hóspede chamado Tomás Noronha. Não podia correr esse tipo de risco.
Onde diabo iria dormir?
Pousou o olhar na convocatória da PSP, a solicitar que comparecesse na esquadra no dia seguinte para fazer declarações, e teve uma ideia. Porque não ir imediatamente à esquadra? Logo que pensou nisso percebeu que era esse o único curso de acção verdadeiramente razoável. Se estava sob ameaça, quem melhor que a polícia para o proteger? Por outro lado, como não se entendia com a Internet do banco, precisava de ir a uma sucursal ordenar a transferência do dinheiro para o lar da mãe, mas já era tarde e os bancos estavam fechados; teria de deixar isso para a manhã seguinte.
Estudou de novo a convocatória e verificou o endereço da esquadra; era no Largo dos Bombeiros Voluntários. A informação nada lhe dizia; tratava-se de uma praça de que nunca ouvira falar em Almada, de resto uma localidade que, vendo bem as coisas, nem sequer conhecia.
Dirigiu-se por isso à fila de táxis estacionados diante do hospital e interpelou um motorista que aguardava os clientes de janela aberta, o braço pendurado na porta.
"Ó amigo, onde é o Largo dos Bombeiros Voluntários?" O taxista estendeu o braço na direcção oriental.
"É depois da auto-estrada, perto do cais de Cacilhas!", indicou.
"Quer que o leve lá?"
Tomás hesitou; o táxi era sem dúvida a melhor e mais fácil solução, mas... e o preço? Estava no desemprego, teria de ser poupadinho.
"Quanto tempo a pé?"
"Uma boa horita", calculou o motorista, deitando já mão à ignição. "De carro é um instantinho..."
Com um aceno rápido, o historiador ajeitou o envelope que 188
trazia debaixo do braço e virou as costas.
"Obrigado, mas vou a pé."
O graduado de serviço era um rapaz novo, de aspecto aprumadinho e ar atinado; sempre constituía uma variação dos habituais barrigudos da PSP, pensou Tomás ao encostar-se ao balcão.
O graduado preenchia um formulário e levou um bom minuto a levantar a cabeça e a encarar o recém-chegado.
"Faz favor?"
O visitante estendeu-lhe a convocatória que lhe fora entregue à saída do hospital.
"Fui convocado para prestar declarações."
O polícia deitou um olhar zeloso ao papel.
"Diz aqui para aparecer amanhã..."
"Digamos que estou com pressa", sorriu Tomás. "Penso que existe uma ameaça sobre mim e preciso de saber o que pode a PSP fazer para me proteger."
O guarda fitou-o por um instante, talvez a avaliar se o homem diante dele estaria na brincadeira. Voltou a espreitar a convocatória e, na dúvida, desviou o olhar:
"Espere ali."
O lugar indicado era uma salinha de espera. Tomás dirigiu-se a ela e acomodou-se num lugar debaixo da janela, o envelope pousado no regaço, o taser preso no cinto por baixo da camisa para entregar à polícia quando prestasse declarações. Ao longo do espaço estavam espalhadas umas quinze cadeiras onde se sentavam mais três pessoas; duas mulheres de cara lacrimejante e um velho de barba rala branca e vestido de negro. O recém-chegado presumiu que se tratava de vítimas que vinham apresentar queixa ou de familiares de detidos à espera de novidades dos seus entes queridos.
Um televisor no canto da sala tinha o ecrã iluminado e, como 189
passava já das oito da noite, nesse momento davam as notícias. A litania sobre a crise parecia infindável. A Alemanha exigia numa linguagem professoral que todos os países da zona euro, e em particular os incumpridores, "fizessem o trabalho de casa", e uma agência de rating tinha baixado a cotação de Portugal mais um nível abaixo de lixo, conceito que lhe parecia insultuosamente humilhante, e descera também as cotações de Espanha, Itália e Bélgica.
"Que tristeza", murmurou o velho de negro e barba rala branca.
"Ao que nós chegámos..."
Vieram ainda notícias sobre a subida do desemprego para novos valores recorde, preparativos para mais Uma cimeira "decisiva" da União Europeia e novas medidas de austeridade destinadas a cortar a despesa pública. Depois vinha a oposição dizer que "o caminho não é a austeridade" e uma manifestação dos sindicatos para contestar "o ataque brutal que o pacto de agressão com a troika estava a lançar aos direitos dos trabalhadores". Em suma, percebeu Tomás, mais do mesmo. Dia após dia as notícias tornavam-se tão previsíveis que pareciam sempre as mesmas; até as imagens se repetiam.
Ao fim de vinte penosos minutos de crise, as notícias mudaram.
Um incêndio num prédio em Setúbal fizera quatro feridos, um deles em estado grave; a GNR tinha detido uma actriz no desemprego a fazer de correio de droga em Vilar Formoso; um tiroteio nas ruas de Lisboa provocara a morte de duas pessoas, um polícia e...
Tomás arregalou os olhos, atónito.
O Telejornal passava nesse instante a notícia do que acontecera com ele e Filipe nessa mesma tarde. Inclinou-se na cadeira e digeriu com a máxima atenção as informações que jorravam do televisor através da voz monocórdica do apresentador sobre imagens que mostravam os cacilheiros a cruzarem o Tejo.
" ... investigação foi entretanto entregue à unidade de combate ao banditismo armado da Polícia Judiciária, que há minutos divulgou uma 190
fotografia do principal suspeito." De repente o ecrã foi preenchido com uma imagem dele próprio. "Trata-se do historiador Tomás Noronha, que se encontra a monte e foi avistado por testemunhas a executar as vítimas com tiros à queima-roupa."
A estupefacção de Tomás não conhecia nesse instante limites.
Principal suspeito?! Avistado por testemunhas a executar as vítimas?!
Disparara tiros à queima-roupa?! Como? Onde? Quem? A perplexidade deixou-o por momentos paralisado, as interrogações a cruzarem-se na sua cabeça num caos sem igual; estava incapaz até de crer no que via e ouvia. Devia haver ali algum engano, um equívoco, uma troca de...
Não.
Fez um esforço para se acalmar e pensar a direito. O que ali estava a acontecer não podia ser normal, considerou. Como era possível que tivesse passado tão depressa de perseguido por um homicida a principal suspeito? Espreitou a convocatória da PSP que lhe fora entregue menos de uma hora antes no hospital. Se naquela altura não passava ainda de uma mera testemunha convocada para prestar declarações na esquadra, o que tinha acontecido em tão pouco tempo para a judiciária mudar o ângulo da investigação e fazer dele o homicida?