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Lembrou-se do medo que surpreendera no olhar de Filipe e das suas palavras a alertá-lo repetidamente para o poder daqueles que os perseguiam. Sentiu nas mãos o peso do envelope que herdara do amigo e o taser escondido à cintura e percebeu que não estava metido num simples caso de polícia. O perseguidor dessa tarde abatera o guarda da PSP com um tiro na cabeça em plena rua e à luz do dia, recordou. Só fazia isso quem estivesse totalmente louco.

Ou quem se soubesse impune.

O seu pensamento voltou a Filipe, em particular à insistência com que o amigo usara os seus últimos instantes de vida para lhe suplicar que fugisse de imediato e o avisara de que "eles" viriam aí e 191

o iriam perseguir. O companheiro do liceu batera muito nessa tecla e Tomás começava a reflectir no caso com outro cuidado. Na altura não prestara atenção, parecia-lhe alarmismo injustificado, se calhar um complexo de perseguição, decerto não passariam de sintomas de paranóia, mas agora...

"Senhor guarda!", gritou uma das mulheres sentadas com ele na sala de espera. "Senhor guarda, ele está aqui!"

A mente de Tomás voltou ao sítio onde se encontrava e, com ar surpreendido, viu a mulher apontar-lhe o dedo denunciador.

"É mesmo ele!", exclamou por sua vez o velho de barba rala branca e roupa negra. "É ele o... o bandido!"

Caindo em si, o historiador apercebeu-se de que toda a gente naquela sala de espera tinha visto a mesma notícia no Telejornal e a fotografia que a judiciária acabara de distribuir, reconhecendo nela o rosto do homem que se sentava debaixo da janela.

"O bandido... o assassino está aqui!"

O graduado olhava-os por detrás do balcão com uma expressão de incompreensão no rosto, sem perceber exactamente a origem de toda aquela excitação, e Tomás tomou consciência de que dispunha apenas de alguns breves segundos para tomar uma decisão. Ficaria ali para esclarecer todo aquele equívoco? A tentação era grande, seria decerto a solução mais simples, mas concluiu que era justamente o que os seus perseguidores queriam. Tudo aquilo não passava de um estratagema para o localizarem e para lhe deitarem a mão.

Levantou-se e largou a correr.

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XXVI

"Alto!"

Ouviu o grito atrás dele e percebeu que o graduado de serviço vinha no seu encalço. Que raio de azar o seu, pensou enquanto corria desenfreado rua abaixo, o corpo ainda dorido mas a adrenalina a ferver-lhe no sangue; com tantos pançudos na PSP, logo tinha de lhe calhar de plantão um polícia novinho e ágil.

"Alto ou atiro!"

Pois, pois!, raciocinou; estás mesmo à espera que acredite que vais disparar? A ameaça não o intimidou, sabia que não passava de um truque a ver se pegava. Mas tinha igualmente consciência de que o seu perseguidor era mais novo e estava fresco, enquanto ele passara um dia absolutamente infernal, sofrera vários hematomas e feridas em todo o corpo, incluindo nas pernas, e não conseguiria manter o ritmo de corrida muito mais tempo. Precisava de arranjar maneira de se escapar ao guarda que o caçava pelas ruas escuras de Almada.

A noite caíra e havia pouco trânsito e ainda menos transeuntes nos passeios. As calçadas eram iluminadas pela luz amarelada dos candeeiros públicos e pelos focos esquivos dos faróis de automóveis ocasionais. Tomás percebeu instintivamente que a sombra poderia ser sua aliada; tinha de tirar partido da escuridão para despistar o betinho da PSP. O problema é que, e ao contrário do seu perseguidor, não conhecia Almada e não podia planear o itinerário de fuga.

Teria de improvisar.

Ao passar para o outro lado da rua vislumbrou o lençol tranquilo 193

do Tejo a reluzir entre dois prédios e percebeu que o cais de Cacilhas ficava a meros dois passos de distância; era a via óbvia de fuga. Virou naquela direcção e meteu por uma área arborizada que desembocou numa zona habitacional. Atrás dele, o seu perseguidor deixara de gritar, talvez para poupar energia, se calhar porque percebera que de nada servia ordenar-lhe que parasse, provavelmente pelas duas coisas.

Virou à esquerda, direitinho ao cais, até que mergulhou numa zona de sombra e, tirando proveito da invisibilidade momentânea, dobrou a esquina de um prédio e contornou-o pelas traseiras, metendo por um caminho de cabras numa zona descampada. Agora é que se ia ver se o polícia se deixava ou não enganar.

"Alto!", gritou o seu perseguidor, a voz de novo a ecoar entre as ruas. "Faça o favor de se entregar!"

Mergulhado na sombra, e apesar de se encontrar à beira da exaustão, Tomás deixou escapar um sorriso. Despistara-o. Os berros eram a prova de que o polícia lhe perdera o rasto; só assim se compreendia o regresso àquele método desesperado.

A nova realidade impunha uma bem-vinda mudança táctica; em vez da correria desenfreada em que tanto se desgastava, teria de se mover devagar e sub-repticiamente pela penumbra. A invisibilidade constituía o seu maior trunfo. Caminhou com cuidado e procurou o abrigo de um arbusto para repousar por momentos. Os pulmões suplicavam por ar e precisava de lhes dar o que eles pediam.

Ouviu sirenes e percebeu que o polícia recebia reforços. Em breve toda a zona de Cacilhas estaria enxameada de guardas, mas isso não o preocupou. Encontrava-se a quinhentos metros do prédio atrás do qual desaparecera e o arbusto e a noite protegiam-no dos olhares perscrutadores dos homens da PSP.

O que fazer? O seu olhar desviou-se quase instantaneamente para os cacilheiros encostados ao cais, ao fundo da colina. Era a escapatória evidente, pensou de novo; talvez por isso mesmo fosse a 194

rota que mais convinha evitar. Se ele fosse polícia, com certeza poria ali homens a vigiar os passageiros. De facto, aquela via estava-lhe interditada. A alternativa parecia-lhe a Ponte 25 de Abril, claro, mas depressa concluiu que a PSP ia ter a mesma ideia e provavelmente estabeleceria vigilância apertada na zona das portagens.

Em suma, o acesso a Lisboa estava-lhe vedado. "Mas o que raio vou eu fazer a Lisboa?"

Sussurrou a pergunta por baixo da respiração e percebeu que tinha acabado de formular a questão mais importante de todas naquele momento. Sim, o que iria ele fazer a Lisboa? Não podia usar o apartamento porque os perseguidores, e se calhar a esta hora também a polícia, o estavam a vigiar. Para onde quer que fosse na cidade sujeitava-se a ser localizado e apanhado pelas autoridades. Como se tornava cada vez mais claro que as forças que o perseguiam de uma maneira ou de outra controlavam a polícia, ser capturado pela PSP ou pela Judiciária era equivalente a ser apanhado por elas.

Um coro longínquo de latidos excitados irrompeu na noite.

"Cães!"

Ergueu-se de um salto e retomou o caminho de fuga, agora já recuperado e espevitado pelo medo que os latidos distantes lhe provocaram. Que burro fora em não ter pensado naquilo!, repreendeu-se a si mesmo; era evidente que a polícia iria recorrer aos cães e isso poderia desequilibrar os pratos da balança contra ele. Os homens da PSP estavam cegos pela treva nocturna, mas os cães tinham o faro a guiá-los e não havia noite que apagasse o odor da transpiração que lhe empapava a camisa.