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Saiu do descampado à primeira oportunidade e emergiu nas ruas de Almada, que percorreu em passo lesto, suficientemente devagar para não atrair atenções, prudentemente rápido para se escapar da zona onde a polícia e os cães operavam. O movimento permanecia baixo, dava a impressão de que toda a povoação se recolhera a casa, 195

mas ainda se viam algumas pessoas a circular por ali.

Reconheceu a rua onde desembocara do trajecto que fizera ao final da tarde até à esquadra e seguiu-a em sentido inverso, como se regressasse ao hospital. Ao fim de quarenta minutos chegou a um troço que dava acesso à auto-estrada. Viu as luzes de um restaurante acesas e apercebeu-se de que estava esfaimado; não comia desde que haviam parado na estação de serviço de Pombal para reabastecer. Pareceu-lhe que isso tinha acontecido uma semana antes mas afinal fora nesse mesmo dia. Quantas coisas haviam sucedido entretanto!

Meteu a mão ao bolso e verificou que, embora não tivesse dinheiro, possuía ainda os seus dois cartões de crédito; estava à vontade para o jantar. Entrou no restaurante, sentou-se num canto discreto e, depois de consultar a ementa, pediu um bitoque. Enquanto esperava pôs-se a pesar as alternativas diante dele. Ir para Lisboa, como já constatara, era um disparate; arriscava-se a ser apanhado pela polícia ou pelo pistoleiro, estava absolutamente fora de questão regressar ao apartamento.

Assim sendo, o que faria? Tudo pesado, percebeu que só lhe restava cumprir o desejo de Filipe. Ele tinha falado numa mulher qualquer da Interpol em Madrid... Como se chamava ela? Rute... não, não era Rute. Começava também por R, mas não era Rute. Rita?

Hmm... também não. Se bem se lembrava, tinha um a no meio. Ra...

Raquel, não seria? Isso, Raquel. Raquel qualquer coisa.

Suspirou de alívio por se lembrar do nome próprio e a seguir ocorreu-lhe que o amigo lhe dissera que o número de telefone dela estava no envelope. Voltou os olhos para o sobrescrito, mas quando o ia inspeccionar foi interrompido pelo empregado com o bitoque.

Comeu com gosto e teve vontade de repetir, mas achou que devia ser prudente nos gastos e matou o resto da fome com pão. Pediu a conta, entregou o cartão e digitou o código.

"Não está a aceitar", disse o empregado, mostrando o visor da 196

máquina a indicar que a transacção não tinha sido autorizada. "Tem de tentar outra vez."

Digitou novamente o código e o resultado foi o mesmo.

Que estranho!", observou, inspeccionando o cartão; parecia-lhe normal. Meteu a mão ao bolso e tirou o outro cartão. "Tente este."

A operação repetiu-se com o segundo cartão e mais uma vez o resultado veio negativo. O suor brotou-lhe na testa no momento em que começou a suspeitar que nada daquilo era acidental; sabia que tinha fundos nas contas, pelo que só podia haver um bloqueio no acesso ao dinheiro.

O rosto do empregado fechou-se.

"Quer tentar de novo?"

O cliente assentiu, mais por descargo de consciência do que por convicção, e o resultado negativo repetiu-se.

"Pois, não está a aceitar", disse, embaraçado. Meteu as mãos ao bolso para verificar o que já sabia. "E a chatice é que não trouxe dinheiro comigo." Encarou o seu interlocutor com uma expressão de impotência. "E agora?"

O empregado manteve o semblante cerrado.

"Vou chamar o patrão."

O homem deu meia volta e Tomás percebeu que se avizinhavam problemas. O dono ia com certeza chamar a polícia e... e...

Saltou do lugar e correu até à rua, mergulhando de imediato na noite. Ainda ouviu um grito atrás dele, mas ignorou-o; perdido por cem perdido por mil. Se era para enfrentar as autoridades, ao menos tentaria a sua sorte. Passou pelo troço que conduzia à auto-

-estrada na direcção de Lisboa e prosseguiu em corrida até chegar a um ramal que conduzia à Auto-Estrada do Sul.

Passavam alguns automóveis pelo local e estendeu a mão a pedir boleia. Permaneceu assim durante dez minutos, ignorado pelos carros que por ali passavam. As luzes encandearam-no por momentos 197

dando-lhe a ilusão de que seria dessa vez, para de imediato o desapontarem fazendo-o regressar à escuridão. Por fim um enorme camião TIR ligou o pisca-pisca e encostou na berma com um bafo profundo. A porta abriu-se, empurrada por uma mão, para o deixar entrar.

"Muito obrigado", agradeceu Tomás ao saltar para o lugar de passageiro. "Para onde vai?"

O motorista, um homem peludo com um bigode negro farfalhudo e a barba por fazer, estudou-o com o olhar.

"Marselha", disse. "Como vou viajar a noite toda, dá-me jeito a companhia."

"Passa por Madrid?"

"Com certeza."

Com o primeiro sorriso de satisfação desde que viera de Coimbra, o passageiro recostou-se no seu lugar e apertou o cinto.

"Então vamos."

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XXVII

Um homem engravatado e de aspecto sisudo assomou à saída do gabinete e espreitou para a salinha de espera. Sentado no sofá com ar de menino bem-comportado que aguardava o momento de ser recebido estava o recém-chegado. O homem da gravata atirou-lhe um esgar carregado de desdém antes de lhe fazer um sinal com a cabeça.

"Faça o favor", disse num tom seco, convidando-o a entrar. "Ele quer falar consigo."

Decarabia levantou-se de pronto e, como um aluno que era chamado ao reitor para receber o correctivo, encaminhou-se em silêncio para a porta e entrou no gabinete, o rosto co mpro m etido, os olhos baixos, mas o po rte altivo.

Sentado no grande cadeirão atrás de uma vasta secretária, Magus parecia absorto na leitura de um dossiê volumoso. Seguindo uma instrução silenciosa do homem engravatado, o visitante deslizou até à secretária e, de pé, quase como se fosse uma sentinela, aguardou que o responsável máximo terminasse a leitura e lhe dirigisse a palavra.

Teve de esperar cinco minutos.

"Não tenho de te dizer que estou muito decepcionado contigo, pois não?"

Magus falou de repente com uma voz assustadoramente baixa e controlada, prenhe de ameaças, os olhos ainda presos aos documentos que lia. Perturbado com o tom, mas aliviado por o seu chefe lhe dirigir enfim a palavra, Decarabia manteve a postura hirta.

"Sim, grande Magus."

"Foste acolhido de braços abertos, mostraste-nos as tuas 199

credenciais e garantiste-nos que não falharias. Mas não foi o que aconteceu, pois não?"

O operacional ponderou por momentos como deveria responder.

"Nas operações existe sempre uma dose de imprevisibilidade", disse.

"Neste caso ela assumiu a forma do historiador."

O olhar sombrio de Magus ergueu-se por fim do dossiê e deteve-se no interlocutor.