"No entanto, tinhas sido avisado."
"É verdade", reconheceu Decarabia. "O problema é que uma coisa destas não se planeia assim. Não o tinha estudado em pormenor, não conhecia o seu modus operandi e... enfim, fui apanhado de surpresa."
Estreitou as pálpebras, numa expressão de forte determinação. "Não voltará a acontecer, grande Magus."
O chefe ajeitou-se no cadeirão e pegou no dossiê que acabava de consultar.
"Podes estar c erto que não" , murmu rou c om a voz carregada de tensão. "Logo que fui informado de que a polícia portuguesa falhara na captura desse indivíduo pedi um relatório completo sobre ele. O
passado, os dinheiros, os trabalhos, os amigos, as gajas que comeu e anda a comer, o que vê na Internet, a declaração de IRS..."
Largou o dossiê sobre a mesa com estrondo. "Está tudo aqui.
Tudinho." Calou-se por um instante e inclinou-se sobre a secretária, os olhos cravados no seu interlocutor para obter um melhor efeito.
"Incluindo a maneira como lhe poderemos deitar a mão."
A atenção de Decarabia assentou por instantes no dossiê.
"Que maneira é essa, grande Magus? Tem alguma coisa em mente?"
O superior hierárquico cruzou os braços e ficou a contemplar o seu subordinado com a expressão de um avaliador, como se ponderasse ainda o destino que haveria de lhe dar.
"Como posso ter a certeza de que desta vez não falharás?"
200
O fantasma de um sorriso perpassou por momentos no rosto do operacional.
"Não falharei", disse com grande ênfase. "Já o vi em acção, sei como raciocina sob pressão... desta vez não haverá surpresas. Pode confiar em mim, grande Magus."
"Ver para crer", devolveu o chefe sem pestanejar uma única vez enquanto o fitava. "Vou dar-te uma segunda oportunidade, ouviste?"
Decarabia manteve-se impassível, mas no olhar perpassou um lampejo de alívio.
"Sim, grande Magus", soltou. "Não se arrependerá."
"Mas não irás sozinho."
O subordinado pareceu ficar desconcertado.
"Não preciso de amas-secas, grande Magus. Sou perfeitamente capaz de dar conta do recado e de..."
"Já não vou correr mais nenhum risco", atalhou Magus com ar de quem não admitia que a decisão fosse discutida e muito menos contestada. "Vais levar alguns irmãos para esta operação e não falharás.
Entendeste?"
Decarabia baixou a cabeça.
"Sim, grande Magus."
O chefe indicou o dossiê com o olhar.
"Leva a papelada e lê", ordenou. "Presta em particular muita atenção à ligação do nosso homem à mãe. Ele tem pelos vistos o hábito de falar regularmente com ela e tenho a certeza de que... enfim, tu sabes."
O operacional sorriu pela primeira vez desde que um jacto privado o trouxera de emergência de Lisboa ao local da reunião.
"Não escapará, grande Magus."
201
XXVIII
O envelope que Filipe lhe deixara continha uma agradável surpresa.
No meio das centenas de páginas de um dossiê sobre a crise e de uma pequena folha de papel com o nome e o telefone do contacto em Madrid, a tal Raquel de la Concha, Tomás descobriu um maço de notas atadas com um elástico. Devolveu-as ao envelope logo que percebeu do que se tratava, não fosse o camionista ver o dinheiro e assustar-se ou começar a alimentar suspeitas em relação ao passageiro.
Com toda a excitação acumulada ao longo do dia, o fugitivo tomou consciência de que não conseguiria dormir tão cedo, pelo que ligou a luz de leitura e passou as horas de viagem a estudar o dossiê.
A leitura apenas foi interrompida uma ou duas vezes, quando o condutor do camião TIR, evidentemente para combater a solidão e o sono, fez alguns comentários sobre futebol, em particular a propósito do último jogo do Glorioso, o nome que dava ao Benfica, e insurgindo-
-se contra "as trafulhices do Bimbo".
"Com as arbitragens nas mãos dos corruptos é que não vamos lá", resmungou. "Não viu aquele penalty que nos gamaram? Um roubo de catedral, foi o que foi!"
O camionista era um transmontano de Alfândega da Fé a quem Tomás, que nem ligava muito ao futebol, respondeu polidamente com vários "pois é!", um "este ano vamos ganhar tudo" e outro "precisamos é de um novo Eusébio", antes de voltar ao dossiê.
Às três da manhã o motorista saiu da auto-estrada e estacionou na zona de descanso de uma área de serviço.
202
"Não posso mais com o sono", confessou, os olhos a pestanejarem assustadoramente. "Vamos mas é bater uma soneca."
Desligou o motor e uma calma retemperadora assentou no interior do camião. Os dois homens inclinaram os assentos para trás e Tomás, o sono enfim a tomar conta dele, escondeu o taser dentro do envelope por recear que ele se tornasse visível à sua cintura e cerrou as pálpebras, preparando-se para dormir.
De repente sentiu um desagradável e intenso odor a queijo estragado e abriu um olho.
"Que é isto?"
Espreitou para o lado e constatou que o motorista acabava de descalçar os sapatos. Com um grunhido conformado, o passageiro virou-se para o outro lado, na ilusão de que as costas chegariam para tapar o cheiro. Ainda matutava naquele fedor pestilento quando, sem dar por isso, escorregou para o sono solto.
Chegaram a Madrid por volta das dez da manhã e o camionista saiu da Autovía de Extremadura e largou-o na zona de Alcorcón, junto ao Parque de los Castillos. Não foi fácil encontrar cabinas telefónicas num mundo de telemóveis, mas acabou por localizar uma delas ao lado da sucursal de um banco. Entrou na cabina, procurou o papel com o contacto que Filipe lhe dera e digitou o número.
Ao terceiro toque atendeu uma voz feminina.
"Hola?"
"Buenos dias", saudou Tomás, ele próprio arrepiado com o seu portunhol horripilante. "Raquel de la Concha?"
"Si, soy yo."
"Chamo-me Tomás Noronha", identificou-se, desistindo do portunhol e optando por falar um português lento. "Sou amigo de Filipe Madureira, não sei se conhece..."
"Si, muy bien. Como está Filipe?"
203
O historiador engoliu em seco.
"O Filipe... enfim, ele morreu. Ontem."
"Perdón?"
"O Filipe morreu", repetiu, quase soletrando cada sílaba. "Ontem...
uh, ayer. Foi assassinado."
"Filipe? Asesinado?"
"Receio bem que sim."
"Dios mio!"
Sentiu o choque do outro lado da linha e deixou a notícia assentar.
Não sabia o tipo de relação que o amigo tinha com a espanhola e achou que era melhor ser cauteloso.
"Antes de morrer deu-me o seu contacto", explicou. "Quem o matou está agora a perseguir-me e o Filipe disseme que viesse ter consigo. Encontro-me agora em Madrid e estou na posse de material importante para a investigação na qual ele estava envolvido e que..."
"Sí, venga, vengar, atalhou Raquel, ainda mal refeita do choque.
"Estou numa pequena povoação pertinho de Madrid, alguns quilómetros a sul. Pode vir até cá?"
"Com certeza", assentiu Tomás, aliviado com a abertura mostrada pela amiga de Filipe e preparando a caneta para rabiscar o endereço.
"Onde é isso?"
"Em Seseha, a quarenta minutos de carro."
"Não tenho automóvel e não posso pagar táxi, receio bem. Há autocarro ou comboio?"
"Existe um serviço de autocarros que parte de Madrid. Pode tomar nota?"