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XXXIII
O Mercedes negro de vidros fumados deteve-se à esquina da calle Velázquez. Após um instante de espera, como uma fera a ronronar enquanto estudava o terreno para lançar o ataque, começou a rolar devagar; parecia estar a testar as presas, o motor quase mudo e os pneus a fazerem estalar as folhas secas que se espalhavam pelo asfalto sujo.
Com as mãos firmes no volante, Decarabia varreu a rua com o olhar. A calle Velázquez estava estranhamente deserta, apenas atravessada por uma nuvem de poeira que se ergueu da direita e arrastou com ela papéis e plásticos, os sacos a esvoaçarem aos solavancos, para a direita, depois para cima, a seguir com outra direcção e noutra velocidade, sempre ao sabor dos humores voláteis do vento inconstante.
Nada daquilo lhe agradava.
"Estamos mais expostos que um pato numa carreira de tiro", observou. "Temos de sair daqui."
O Mercedes dobrou a primeira esquina e estacionou ao lado de um renque de oliveiras, já abrigado de olhares indiscretos que pudessem espreitar dos prédios alinhados ao longo da calle Velázquez.
Decarabia desligou o motor e, quebrando o súbito silêncio, os três homens saíram do automóvel, os olhares conhecedores a perscrutarem o quarteirão em busca de qualquer ameaça.
Tudo parecia incrivelmente vazio. Apenas se escutava o farfalhar variável da brisa, agora forte, a seguir mais brando, para logo depois 228
voltar a levantar. O claque seco das portas do carro a fecharem-se encheu por instantes a rua, ecoando entre os prédios abandonados.
Decarabia abriu a bagageira e um dos seus companheiros destrancou a mala diplomática, deixando à vista dos três as armas atadas a um painel.
Decarabia estendeu a mão para uma das pistolas.
"A Beretta é minha."
Os seus dois companheiros ficaram com as Glock. Os três homens pegaram nas peças anexas e ajustaram-nas às armas, atarraxando os silenciadores aos canos.
"Estamos prontos para enfrentar um exército", disse um dos operacionais. "Com estas meninas vamos arrasar." Decarabia olhou-o de esguelha.
"Vais é ter juízo, ouviste?", avisou. "Estes brinquedos são para usar com discrição. Não queremos atrair atenções indesejadas."
O homem assentiu com um aceno; era um mero executor, fazia o que lhe mandavam, os outros que pensassem.
Decarabia verificou as balas na sua Beretta e, satisfeito, guardou a arma à cintura. Tirou do bolso o papel e verificou a morada exacta do alvo.
Depois esquadrinhou a calle Velázquez com o olhar, inspeccionando um a um os números fixados sobre as portas, até se deter num edifício ao fundo da rua.
"É ali."
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XXXIV
Os pratos de sobremesa eram uns petit gâteaux que Raquel tirou do congelador e apressadamente cozinhou no microondas. Pô-los tempo de mais no aparelho, uma vez que os doces vieram a fumegar e com o molho de chocolate solidificado. Tomás retirou um pedaço da sua sobremesa e provou-a quase a medo.
"Então?", quis a espanhola saber. "Qual foi o crime do século?"
O seu interlocutor apontou com a pequena colher para o doce pousado diante dele.
"Este petit gâteau", indicou. "Cozinhá-lo desta maneira é o crime do século. Não podia ao menos ter preservado o molho de chocolate?"
A anfitriã fez uma careta.
"Vá, não abuse. Ter sobremesa já não é mau, isto não é nenhum restaurante." Mordeu o lábio inferior. "Dizia você que foi cometido o crime do século. Explique lá isso melhor."
Tomás trincou mais um pedaço do seu doce; havia de facto sido demasiado cozinhado, mas continuava delicioso.
"Estamos perante a tempestade perfeita", começou por dizer enquanto se lambuzava com o seu petit gâteau. "A uma crise estrutural do Ocidente e em particular das economias do Sul da Europa juntou-se a crise financeira americana e a crise estrutural do euro."
"Tudo relacionado?"
"De certo modo", assentiu o historiador. "Acontece que as crises estruturais, a do Ocidente, a das economias sul-europeias e a do 230
euro, eram silenciosas e prolongadas. Só se tornaram visíveis graças à crise financeira, que pôs tudo a nu. É um pouco como se vivêssemos numa casa com as estruturas rachadas, está a ver? Um dia vem um terramoto e... pimba, lá vai a casa abaixo! O que dizemos então? Ai, a minha casa foi destruída pelo terramoto!" Estreitou as pálpebras.
"Mas estaremos a dizer a verdade?"
"Sim e não", retorquiu a agente da Interpol. "Sim, porque foi o terramoto a causa próxima. Não, porque a casa já tinha as estruturas debilitadas e mais dia menos dia viria abaixo."
"O mesmo se passou com esta crise. As economias ocidentais e o euro são a casa com os pilares rachados, a crise financeira americana foi o terramoto. Para perceber esse terramoto temos de recuar no tempo e ver o que aconteceu no terramoto anterior, ocorrido em 1929."
"Ou seja, a Grande Depressão", observou Raquel. "Porque diabo vocês, os historiadores, explicam tudo recorrendo ao passado?"
"Porque o passado dá-nos pistas para o presente, ora essa!", exclamou Tomás, defendendo a sua formação académica. "Já viu como para se perceber alguma coisa do presente é preciso conhecer a história?"
Pigarreou. "Recuemos pois aos anos 20. Ao longo de quase toda essa década, a Reserva Federal dos Estados Unidos manteve as taxas de juro artificialmente baixas, o que encorajou os bancos a emprestarem dinheiro em condições arriscadas. Como o dinheiro era tão barato, as pessoas endividaram-se à louca, criando uma bolha de consumo, em particular na bolsa e no imobiliário. Com tanta procura, os preços começaram a subir. Receando que a inflação se descontrolasse, em 1928 o Fed foi forçado a aumentar os juros. Isso fez rebentar a bolha.
Os consumidores viram de repente dificultado o acesso ao crédito a que estavam habituados e, como passaram a ter menos dinheiro, deixaram de pagar as dívidas e de comprar acções, bens e propriedades. Os bancos não conseguiam reaver o dinheiro que 231
haviam emprestado e as empresas produziam bens que ninguém comprava. Sem conseguirem vender, baixavam os preços para atrair clientes, mas o consumo permaneceu baixo porque os juros continuavam altos. As empresas acumularam prejuízos e começaram a falir. Com as empresas a perderem dinheiro ou a fecharem, as acções aceleraram a queda e provocaram o colapso de Wall Street."
"O famoso colapso de 1929, não é?"
"Foi na chamada terça-feira negra. A derrocada da bolsa ameaçou ainda mais a liquidez dos bancos, muitos dos quais tinham investido demasiado em acções. Os depositantes assustaram-se com as informações de que os bancos não estavam bem e correram para levantar os dólares e trocá-los por ouro ou escondê-los debaixo dos colchões. Em vez de injectar dinheiro na economia, onde faltavam dólares, o Fed manteve as taxas de juro altas. Com os cofres vazios, os bancos faliram em cascata. Os que sobreviveram, escaldados, tornaram-se muito conservadores nos empréstimos. Sem os bancos a financiá-las, as acções em baixo e o dinheiro dos consumidores guardado debaixo dos colchões ou em ouro, as empresas não vendiam produtos nem se financiavam, e as insolvências aceleraram. Mais pessoas ficaram sem emprego. O caos espalhou-se pela América e depois pelo mundo."