"Isso é estranho, não é?", interrogou-se Raquel. "Se o problema era americano, porque contagiou o resto do mundo?"
"Porque a Europa vivia à custa de dinheiro que vinha da América. Os Aliados europeus combateram na Primeira Guerra Mundial com dinheiro emprestado pelos bancos dos Estados Unidos.
Quando a guerra acabou chegou a hora de pagar. Mas pagar com quê, se a Europa não tinha dinheiro? Assim, pediram empréstimos novos para pagar os antigos. Ou seja, resolveram a dívida com mais dívida, um esquema piramidal que caracterizou a vida nos anos 20. Por outro lado, a Alemanha, sobrecarregada pelas reparações de guerra, 232
também só se sustentava com o dinheiro que pedia emprestado à América. Quando os bancos americanos entraram em colapso toda a pirâmide se desfez. Os países europeus, que viviam viciados nos empréstimos americanos, viram a torneira fechar-se e ficaram sem dinheiro. As economias paralisaram e os estados entraram em incumprimento. Como metade do planeta estava nas mãos dos europeus, a crise globalizou-se."
Raquel emitiu um assobio.
"Madre de fios, sempre ouvi falar na crise de 1929 mas nunca a tinha entendido realmente", observou em tom aprovador. "Você explicou isso muito bem, sim senhor!"
O historiador arqueou as sobrancelhas sucessivamente para cima e para baixo, brincalhão.
"Não é por acaso que sou... ou era, o professor mais requisitado da minha faculdade."
Ela soltou uma gargalhada.
"Ai que vaidoso!", gracejou com uma careta trocista. "Já vi que é peneirento."
"Não confunda sinceridade com vaidade", retorquiu Tomás. "De qualquer modo, vale a pena notar que, se for a ver bem, tudo o que lhe expliquei referente à Grande Depressão é hoje estranhamente familiar, não acha?" Começou a enumerar com Os dedos. "Dinheiro fácil, endividamento das pessoas, endividamento dos países, bolhas que crescem, subida das taxas de juros, bolhas que rebentam, dívidas que ficam por pagar, bancos sem dinheiro, países insolventes, desemprego a alastrar..."
"Tem razão, hoje em dia ouvimos tudo isso nas notícias."
"A história económica tem o seu quê de monotonia", notou o português. "Tende a repetir-se com previsibilidade enfadonha. Como dizia Aldous Huxley, 'o charme da história e a sua lição enigmática consiste no facto de que, de era em era, nada muda e apesar disso 233
tudo é completamente diferente'."
"Acha que a actual crise é igual à de 1929?"
O historiador passou o indicador pelas manchas de chocolate que restavam no prato de sobremesa.
"Sabe, convém primeiro perceber como foi enfrentada a Grande Depressão", disse ao lamber o dedo. "Uma das coisas que as autoridades
americanas
perceberam
foi
que
os
bancos
desempenharam uni papel crucial em toda a crise. Fecharam onze mil bancos na América, e isso não podia ser. Os governantes tentaram perceber o que correra mal e tomaram consciência de que, na mira do lucro fácil, os bancos se haviam envolvido em investimentos de alto risco. Além disso, emprestaram dinheiro a pessoas, empresas e países que não tinham condições de pagar e que, quando as dificuldades surgiram, entraram em incumprimento. Por outro lado, havia um problema de confiança dos depositantes, que nessa época corriam aos bancos para levantar o dinheiro à menor notícia de que eles enfrentavam dificuldades, com receio de perderem todos os seus depósitos. Havia, pois, que mudar isso."
"Ah, foi assim que nasceram as garantias do estado aos depósitos até um determinado valor, não é verdade?"
"Exactamente. Essa foi a medida concebida em 1933 para parar com as corridas aos bancos. O problema é que essa garantia tinha algo de imoral. Ela significava que, se o banco gerisse mal, os contribuintes pagariam para cobrir essa má gestão, mas se gerisse bem o banco ficaria com todos os lucros, nada entregando aos contribuintes que arriscavam o dinheiro com a garantia que davam.
Não podia ser. Assim, como contrapartida pelo risco que passou para o bolso dos contribuintes, o governo americano impôs aos bancos um quadro de regulação do mercado que limitou a competição selvagem e atingiu o seu expoente máximo com a aprovação no mesmo ano da Lei Glass-Steagall, que separou os bancos comerciais 234
dos bancos de investimento. Esta decisão foi crucial."
"Porquê? Como é que uma simples separação de bancos muda alguma coisa?"
"Repare, o que são bancos comerciais e bancos de investimento? Os bancos comerciais limitam-se a guardar as poupanças dos depositantes e a fazer empréstimos, enquanto Os bancos de investimento se caracterizam por gerir o dinheiro dos ricos e envolver-se em actividades de risco, como investimentos em acções e obrigações.
Ora o que se estava a passar? Os bancos que recebiam os depósitos andavam a fazer investimentos arriscados com o dinheiro dos depositantes.
Além do mais, ao juntarem as duas actividades, comercial e investimento, os bancos haviam-se tornado demasiado grandes e as suas falências afectavam todo o sistema e paralisavam a economia. Não podia ser. Foi por isso que a Lei Glass-Steagall os separou."
A espanhola fez uma careta e resmungou com cepticismo.
"Pois, mas essa medida falhou..."
"Pelo contrário", apressou-se Tomás a esclarecer. "As medidas de regulação foram um grande sucesso e as falências praticamente pararam logo que as novas regras entraram em vigor. Os bancos comerciais passaram a ser muito mais prudentes na gestão do dinheiro dos depositantes. Por um lado, o cidadão comum não queria de modo nenhum que as suas poupanças fossem arriscadas no casino das bolsas, pelo que o investimento de risco cessou. Por outro, os bancos comerciais passaram a viver exclusivamente da diferença entre os juros que pagavam aos depositantes e o juro que recebiam das pessoas, das empresas e dos países a que emprestavam o dinheiro. Como é evidente, tinham todo o interesse em só emprestar a quem pagasse, não é verdade? Isso garantiu a solidez do sistema."
"Desculpe, mas se assim fosse não teria havido o colapso financeiro em 2008, pois não? A ocorrência desse colapso prova que a regulação não funcionou."
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"Não, minha cara", retorquiu Tomás com grande ênfase. "O
colapso de 2008 prova que a regulação funcionou. Veja bem, durante um quarto de século o sistema financeiro não sofreu qualquer sobressalto, pois não?"
"Então o que correu mal?"
"O que correu mal foi que, nos anos 60, os bancos começaram a ser geridos por uma nova geração de banqueiros, gente que não tinha vivido os tempos da Grande Depressão e que queria expandir a sua actividade para áreas de maior risco, que eram mais lucrativas. Os novos políticos também não tinham passado pela grande crise de 1929
e aceitaram flexibilizar algumas regras de regulação, o que teve como consequência um maior comportamento de risco por parte dos bancos e o consequente aumento das falências nos anos 70."
"Se as falências aumentaram, porque não voltaram à regulação que tinha sido revogada?"