"Porque o clima ideológico se alterou", explicou o historiador.
"Lembre-se que a nova geração de líderes não tinha vivido a Grande Depressão e achava que os tempos tinham mudado e já não se justificavam determinadas medidas restritivas. Foi por isso que em 1980 o presidente Carter aprovou uma lei que permitia que os bancos se tornassem mais competitivos no pagamento de juros aos depositantes. Mas os grandes investidores de Wall Street achavam que isso não era suficiente e queixavam-se de que, ao limitar as actividades de risco, a regulação não os deixava fazer muito dinheiro. O que era verdade. A limitação do risco impedia as perdas catastróficas, mas também os lucros mirabolantes." Abriu os braços e sorriu. "Foi assim que, em 1981, a América elegeu para a Casa Branca um actor de Hollywood que tinha, o que não era inocente, o apoio entusiástico de Wall Street."
Raquel arregalou os olhos e, num tom de espanto, pronunciou o nome muito devagar.
236
"Ronald Reagan ?"
Com um aceno afirmativo, o historiador anuiu.
"A retórica do mercado livre e da regulação conheceu um novo e poderoso impulso com a eleição do presidente Reagan. A ideia era simples: os mercados funcionam bem por si mesmos, os regulamentos são empecilhos que impedem o bom funcionamento da economia livre, a regulação não é a solução mas o problema, o mercado deve ser totalmente livre. Desregule-se!"
"Há uma certa lógica nesse raciocínio..."
"Uma lógica que só um tolo engole!", devolveu Tomás num tom categórico. "Imagine que não havia uma lei a proibir o homicídio. O
que aconteceria? Um homem com fome via uma velhota sair do supermercado e matava-a na rua para comer o que ela tinha no saco. Ou seja, as pessoas estavam sempre a matar-se umas às outras por dá cá aquela palha. Foi justamente para impedir isso que o homicídio foi proibido. As leis são o que nos separa da bestialidade. Ora a lei é uma regulação criada para impedir que uni determinado sistema entre em curto-circuito. É uma estupidez pensar que não é preciso proibir os homicídios porque Os homicidas se auto-regulam livremente. Isso nunca funcionaria. No futebol, por exemplo, há Uma lei que impede que se jogue a bola com a mão. Se se acabar com essa lei, os jogadores começam a agarrar a bola com as mãos sempre que lhes convém e o jogo é destruído." Fez um gesto a indicar o que estava para lá da janela da sala. "Até a natureza está repleta de leis! As leis são regulação, minha cara. Se o universo, a natureza, a vida, a sociedade e até os desportos precisam de regulação para funcionarem, por que razão o mercado haveria de ser a excepção e prescindir de regulação? Isso não faz sentido nenhum!"
Raquel ponderou o argumento.
"Pois, tem razão", acabou por reconhecer. "A verdade é que a própria natureza é regulada por leis. Mas se assim é, como se passou a defender a desregulação do mercado?"
237
"Porque isso interessava aos tubarões da alta finança, uma vez que lhes abria a porta a fortunas fabulosas. Que isso destruísse o próprio mercado e pusesse em causa a economia e a sociedade não era problema deles. Esses tubarões lançaram uma campanha ideológica a favor da desregulação e puseram-se a financiar com centenas de milhões de dólares as campanhas de políticos de vários partidos em troca de promessas de que, uma vez eleitos, removeriam as regulações que impediam a alta finança de fazer lucros pornográficos."
"E foram removidas?"
"Com certeza! A primeira coisa que Ronald Reagan fez foi pôr fim aos limites às taxas de juro oferecidas aos depositantes, permitindo assim a competição selvagem entre bancos e encorajando comportamentos de risco.
Depois autorizou que as caixas bancárias fizessem investimentos arriscados com o dinheiro dos depositantes. A seguir tentou anular a Lei Glass-Steagall e expandir os poderes dos bancos, mas não conseguiu.
Então o que fez Reagan? Nomeou para secretário do Tesouro o GEO do banco de investimento Merrill Lynch e pôs-se à procura para o cargo de regulador de alguém que não acreditasse na regulação. A escolha recaiu num tipo chamado Alan Greenspan. Com Greenspan à frente do Fed, os reguladores reinterpretaram os seus poderes no sentido de permitir que os bancos entrassem em actividades de risco que até então lhes estavam vedadas. A ideologia da desregulação alastrou, apoiada por economistas também subvencionados pela alta finança. Os presidentes seguintes, George H. Bush, Bill Clinton e George W. Bush, prosseguiram a mesma política e chegaram ao ponto de exportar esta ideologia de desregulação para o resto do mundo. Até que, em 1999, o grande objectivo foi finalmente alcançado."
"Desregularam tudo?"
"Na prática, sim. Isso foi conseguido com a Lei Gramm-Leach-Bliley, que eliminou enfim o que restava da Lei Glass-Steagall. Os bancos comerciais foram autorizados a ter actividades de bancos de investimento, 238
exactamente como acontecia antes do colapso de 1929."
Raquel olhou-o de olhos semicerrados.
"Essa lei foi eliminada em 1999, diz você?"
"Exacto", confirmou ele. "Nove anos depois, em 2008, veio o colapso financeiro."
"Acha que foi coincidência?"
O historiador afastou o prato de sobremesa que o seu indicador limpara de chocolate e encarou a sua interlocutora com uma expressão de desafio no rosto.
"Não me diga que também acredita no Pai Natal…"
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XXXV
Os três homens levaram meia hora a aproximar-se do prédio situado a meio da calle Velázquez. Saltitaram de ponto em ponto com cuidado para não serem notados, os olhos a dispararem em todas as direcções, as armas escondidas, os movimentos dominados pela preocupação de as suas presenças se manterem invisíveis.
Quando chegaram enfim junto do edifício, Decarabia projectou um olhar na direcção de um dos companheiros.
"Sobe até ao segundo andar", ordenou, indicando o prédio onde se abrigavam, mesmo diante do imóvel no qual supostamente se encontravam os alvos. "Diz-me o que vês no edifício em frente."
Sem pronunciar palavra, o homem mergulhou na estrutura abandonada e desapareceu no interior, os primeiros passos da escalada das escadas a ecoarem no átrio e a perderem-se na distância.
Decarabia ficou escondido atrás de um pilar, a vigiar a rua e à espera de novidades.
O batedor regressou dez minutos mais tarde e encostou-se ao pilar para apresentar o seu relatório.
"O apartamento do segundo andar está de facto ocupado", revelou, indicando o prédio que vigiavam nesse instante. "Vi uni homem e uma mulher na sala."
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"O que fazem eles?"
"Estão sentados à mesa a conversar", foi a resposta. "Têm uns pratos diante deles."
"São os nossos pombinhos?"
O batedor fez uma careta e encolheu os ombros.
"É difícil dizer", acabou por admitir. "Estão um pouco distantes, o vidro tem reflexos e, além do mais, apenas vi fotografias dos nossos alvos. Mas nada vi que me faça pensar que não eram eles. As idades conferem e os cabelos também."