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— Faça a sua pergunta! — disse ele.

Fiquei no meio do círculo e fiz minha pergunta:

— Este mundo, Gethen, daqui a cinco anos, será um membro do Conselho Ecumênico dos Mundos Conhecidos?

Silêncio. Fiquei ali, preso no centro de uma teia tecida de silêncio.

— É uma pergunta respondível — retrucou o áugure tranqüilamente.

Houve uma sensação de relaxamento. Aqueles blocos de pedra encapuzados se movimentaram; o que tinha olhado tão estranhamente para mim começou a sussurrar com seu vizinho.

Deixei o círculo e juntei-me aos observadores perto da lareira. Dois dos áugures permaneciam desligados, sem falar. Um deles levantava a mão esquerda, de tempos em tempos, e batia no chão, rápida e levemente, umas vinte vezes, e a se­guir imobilizava-se novamente.

Não os havia visto antes: eram os zanis, explicou-me Goss. Eles eram insanos. Goss os chamava de “divisões do tempo”, talvez o equivalente a esquizofrênicos. Os psicólogos de Karhide, apesar de não conhecerem a comunicação mental e serem como médicos cegos, eram hábeis em saber lidar com drogas, hipnose, choques, toques criônicos e várias ou­tras terapias mentais; perguntei se esses dois psicopatas não poderiam ser curados.

— Curados?! — exclamou Goss. — Você curaria um cantor por possuir voz?

Cinco membros do círculo eram residentes de Otherhord, adeptos do handdara e também celibatários enquanto permanecessem como áugures, não adotando parceiros (kemmer) nos seus períodos de potência sexual. Um deles devia estar em período de kemmer, durante a prática do vaticínio, eu podia percebê-lo. Já sabia perceber a sutil intensificação física que caracteriza a primeira fase do kemmer. Ao lado deste kemmerer, sentou-se o Pervertido.

— Ele veio de Spreve com o médico — disse-me Goss. — Alguns grupos de áugures despertam a perversão artificialmente, isto é, injetando hormônio masculino ou feminino durante os dias que precedem a sessão. Mas é melhor ter-se a fase naturalmente. É claro, alguns gostam de notoriedade.

Goss usava o pronome “ele”, que designa o animal ma­cho, não o que distingue o ser humano no papel masculino do kemmer. Ele parecia um pouco embaraçado — os karhideanos discutem assuntos sexuais livremente e falam de kemmer com respeito e prazer misturados. Mas tornam-se reticentes ao se tratar de perversão — pelo menos o eram comigo. Um prolongamento excessivo deste período, com de­sequilíbrio hormonal pendendo para o masculino ou o femi­nino, provoca o que eles chamam perversão. Não é raro; três a quatro por cento dos adultos podem ser pervertidos fisio­lógicos ou anormais, quer dizer, normais segundo nosso padrão. Eles não são excluídos da sociedade, mas são tole­rados com um certo desdém, como os homossexuais o são em sociedades bissexuadas.

A gíria karhideana para designá-los é “semimortos”, pois são estéreis.

O Pervertido do grupo, após aquele primeiro longo e estranho olhar dirigido a mim, não prestou mais atenção a ninguém a não ser ao seu vizinho, o kemmerer, cuja sexua­lidade ativa seria estimulada gradativamente até se formar uma capacidade feminina completa, por essa insistente e exagerada masculinidade do Pervertido. Este mantinha-se falando suavemente, inclinando-se para ele, que respondia pouco e parecia se encolher. Os outros estavam calados e não havia outro som a não ser o murmúrio do Pervertido. Faxe observava atentamente um dos zanis. O Pervertido colocou a mão rápida e suavemente na do kemmerer, que esgueirou-se ao tato, com medo ou repulsão, e olhou para Faxe como que pedindo auxílio. Faxe não se mexeu. O kemmerer então permaneceu no seu lugar e não se moveu quando seu vizinho o tocou novamente.

Um dos zanis ergueu o rosto e emitiu um longo e falso riso: “Ah, ah, ah…” Faxe ergueu a mão. Imediatamente todos os rostos do círculo se voltaram para ele, como se tivesse juntado o grupo num só feixe.

Era uma tarde chuvosa aquela. A luz acinzentada tinha se desvanecido nas estreitas e altas janelas; agora, frestas de luz se alongavam pelo solo, como velas fantásticas, longos triângulos da parede ao chão e sobre o rosto dos nove. Vinham do luar lá fora. O fogo havia se extinguido há muito e não havia outra luz senão estas listas pálidas deslizando pelo círculo, desenhando um rosto, uma mão, um dorso imóvel.

Por instantes vi o perfil de Faxe rígido e pálido como uma pedra clara naquela luz difusa do anoitecer. A diagonal do luar atingiu as costas dokemmerer de cabeça encurvada sobre os joelhos, mãos crispadas, corpo tremendo ao ritmo regular das batidas das mãos do zani sobre as pedras. Esta­vam todos ligados, ligadíssimos, como se fossem ponto de união de uma teia de aranha. Eu sentia, independente de minha vontade, a conexão que os ligava, sem palavras, inar­ticulada, através de Faxe, que tentava controlar e manobrar, pois ele era o centro, o mestre, o áugure-mor. A luz fraca acabou por desaparecer ao atingir a parede oposta; mas aque­la rede de forças, de tensões no silêncio, crescia.

Eu tentava me manter mentalmente desligado deles; fiquei muito inquieto por aquela tensão silenciosa e elétrica, por uma sensação de ser sugado para lá, tornando-me um ponto, uma figura integrada também naquela rede. Porém sempre que tentava erguer uma barreira psíquica entre mim e eles era pior: sentia-me cortado e acuado dentro de mim mesmo, com a mente perseguida por alucinações da visão e do tato, um caldeirão fervente de imagens selvagens, visões abruptas e sensações carregadas de tensões sexuais grotescas, violentas, um fermentar vermelho e negro de raiva erótica. Sentia-me como que sugado para dentro de aberturas, de bocas com lábios esfarrapados, vaginas, feridas, entradas do inferno; perdia meu equilíbrio, caía… Se não conseguisse deter esse caos, despencaria mesmo, ficaria louco e não sa­beria como recobrar-me disto. As forças de empatia que estavam em ação eram imensamente poderosas e confusas. Surgidas da perversão e frustração do sexo, estavam muito acima do meu controle e da minha repressão. Entretanto, elas estavam controladas. O centro ainda era Faxe. Horas se passaram, não havia mais luar, apenas escuridão, e no centro dela estava Faxe — a pitonisa — uma mulher, uma mulher vestida de luz. Era uma luz prateada; de prata era sua armadura… Uma mulher vestida com armadura de prata com uma espada… A luz subitamente aumentou, tornou-se fogo, intolerável, e ela gritou, numa expressão de dor e terror:

— Sim! Sim! Sim!

O riso histérico do zani recomeçou e cresceu, cada vez mais forte, até atingir uma altura insuportável, indo e vindo, oscilante, muito mais forte que qualquer voz humana poderia gritar, perfurando o tempo. Houve movimentos no escuro, uma confusão de pés se arrastando e como que uma quebra de encanto, uma evasão de prenúncios.

— Luz! Luz! — exclamou uma voz poderosa. Inúme­ras vezes: — Luz! Luz! Acendam a lareira! Luz!

Era o médico de Spreve. Ele havia entrado no círculo e o encantamento se quebrara. Estava ajoelhado ao lado dos zanis, as peças mais vulneráveis do grupo. Ambos estavam encolhidos no chão. O kemmerer repousava com sua cabeça nos joelhos de Faxe, respirando ofegantemente, ainda tremendo todo. A mão de Faxe acariciava seu cabelo, com uma certa gentileza ausente. O Pervertido tinha se retirado para um canto, soturno e deprimido. A sessão tinha terminado, o tempo continuava como sempre. A rede de energia se dis­solvera em cansaço e mal-estar. Onde estava a minha respos­ta, a predição do oráculo, a ambígua enunciação da profecia?

Ajoelhei ao lado de Faxe. Olhou-me com seu olhar lím­pido. Por instantes eu o vi, como antes, no escuro, como uma mulher vestida de luz e queimando no fogo, gritando: “Sim!”