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Meus companheiros de trabalho me emprestavam di­nheiro e roubavam peixe para meu jantar, até eu conseguir ser reintegrado no trabalho antes que morresse de fome. Eu aprendera a lição. Estimava esta gente áspera e leal, mas eles viviam numa ratoeira, nela não havia saída, e eu tinha trabalho a desempenhar noutro meio, embora não fosse da minha preferência. Fiz chamadas telefônicas para os contatos que vinha adiando há três meses. No dia seguinte, estava lavando minha camisa na lavanderia coletiva que ficava no pátio cen­tral de nossa ilha, junto aos companheiros, todos nós semi­nus, quando, através dos vapores fedorentos da roupa impregnada de peixe e da barulheira da água, ouvi alguém me chamar pelo sobrenome: ali estava o Comensal Yegey, exatamente o mesmo que eu conhecera na recepção do embaixador dos Arquipélagos, no salão de cerimônias do palácio de Erhenrang, há sete meses.

“Saia daí, Estraven”, disse ela em sua voz alta, nasal e aguda, típica dos ricos de Mishnory. “Vamos, deixe aí essa maldita camisa.”

“Não tenho outra.”

“Então pegue sua camisa nesse ensopado e venha. Que calor faz aqui!”

Os outros olharam Yegey com uma curiosidade severa, sabendo-o um homem rico, mas não comensal. Não gostei de sua presença. Deveria ter mandado alguém procurar-me. Muito poucos orgotas têm qualquer sentimento de decência, e eu queria vê-lo, logo, fora dali. Como a camisa estava molhada, pedi a um rapaz que estava perambulando por ali que a guardasse até a minha volta. Minhas dívidas estavam pagas; meus papéis voltaram ao bolso da capa e, assim, sem camisa, abandonei a ilha e fui com Yegey para a residência dos po­derosos.

Fui registrado, novamente, nos arquivos de Orgoreyn como seu “secretário”. Não mais como um número numa ficha, mas como seu “dependente”. Nomes não importam; antes deles tem que se ter um título que diga o que a pessoa faz, o cargo que ocupa, antes de dizer quem é. Mas desta vez o rótulo estava adequado: eu era mesmo um dependente e muito em breve iria amaldiçoar o destino que me levara a comer do pão da casa alheia. Eles se esqueceram de mim por um mês e eu fiquei tão impotente quanto no tempo em que me encontrava na Ilha do Peixe.

Numa tarde chuvosa do último dia de verão, Yegey mandou-me buscar e fui ao seu gabinete, onde o encontrei conversando com o comensal do distrito de Sekeve, Obsle, que eu conhecera quando chefiava a missão comercial da Marinha orgota, em Erhenrang. Baixo e encurvado, com pequenos olhos triangulares num rosto gordo e achatado, fazia uma dupla estranha com Yegey, ossudo e delicado. Eram, porém, mais do que isso: eram dois dos trinta e três mem-bros que governavam Orgoreyn. E, quem sabe, outras coisas mais, além disso.

Trocamos cumprimentos e bebemos um trago de aqua-vita de Sithish. Aí, tomando fôlego, Obsle me disse:

“Agora, me conte, por que você agiu daquele modo no caso Sassinoth, Estraven? Se há uma pessoa incapaz de errar no cálculo da hora precisa de agir ou na avaliação da shifgrethor, essa pessoa é você.

“O medo sobrepujou a cautela, comensal.”

“Medo de quê, diabos?! De que você tem medo, Es­traven?”

“Do que está acontecendo agora, a continuação desta luta pelo poder no vale do Sinoth, a humilhação de Karhide e a raiva que brota da humilhação — e o uso desta raiva pelo governo de Karhide.”

“Uso? Com que fim?”

Obsle era grosseiro. Yegey, delicado, mas abespinhado, interrompeu:

“Comensal, Lorde Estraven é meu hóspede e não pre­cisa ser submetido a um interrogatório.”

“Lorde Estraven responderá às perguntas quando achar que deve, como sempre fez”, disse Obsle rindo, mas com a alfinetada escondida nas pregas gordurosas do sorriso. “Ele sabe que está entre amigos.”

“Eu busco os amigos onde os encontro, comensal, mas não espero conservá-los por muito tempo.”

“Sei disso. Entretanto, podemos empurrar juntos um trenó sem sermos kemmering, como dizem em Eskeve, não é? Com mil demônios! Eu sei a razão por que você foi exi­lado, meu caro. . . por amar Karhide mais que ao seu rei.”

“Melhor gostar do rei do que de seu primo, não?”

“Ou gostar de Karhide mais do que de Orgoreyn”, completou Yegey. “Estou enganado, Lorde Estraven?”

“Não, comensal.”

“Você pensa”, disse Obsle, “que Tibe deseja governar Karhide eficientemente, como o fazemos em Orgoreyn?”

“Sim. Tibe, usando a disputa do vale do Sinoth como um aguilhão, e afiando-o de vez em quando, pode, em um ano, executar grandes mudanças em Karhide, que os últimos mil anos não viram. Ele já tem um modelo em que se basear: o Sarf. E ele sabe como manobrar os temores de Argaven. Isto é mais fácil do que despertar a coragem de Argaven, como tentei. Se Tibe conseguir, os senhores verão que têm um inimigo à sua altura.”

Obsle concordou; Yegey disse:

“Eu abro mão ao shifgrethor.”

“Aonde você quer chegar, Estraven?”

“Nisto: este continente pode conter dois Orgoreyns?”

“Ai, ai, ai… o mesmo penso eu”, acrescentou Obsle. “Você meteu isso na minha cabeça há muito tempo, Es­traven, e eu nunca consegui arrancar do meu pensamento. Nossa sombra se projeta cada vez mais — vai cobrir Karhide também. Uma disputa entre dois clãs, sim; uma linha entre duas cidades, admito; uma disputa de fronteiras e alguns incêndios e assassinatos, está certo. Mas uma disputa entre nações? Uma rixa que envolva cinqüenta milhões de almas? Oh, pelo doce leite de Meshe, isto é uma visão que tem perturbado meu sono, algumas noites, e faz-me acordar suando… Não estamos seguros, não mesmo! Você sabe disso, Yegey; você já disse isso, inúmeras vezes, a seu modo.”

“Já votei treze vezes contra a pressão sobre a disputa do vale do Sino th. Mas no que deu? A facção dominante tem vinte votos a seu dispor e cada ação de Tibe fortalece o controle do Sarf sobre os vinte. Ele constrói uma cerca no vale, coloca guardas nela, armados com fuzis de caça — fuzis de caça! Pensei que eles já estivessem guardados em museus. Ele alimenta a facção dominante com o desafio sempre que precisa de um.”

“E assim fortalece Orgoreyn. Mas também Karhide. Cada resposta que vocês dão às suas provocações, cada hu­milhação que fazem Karhide sofrer, cada êxito do seu pres­tígio, vai fazer Karhide cada vez mais forte, até que se torne seu igual — tudo sob o controle de um único centro como Orgoreyn. E, em Karhide, os fuzis de caça não estão em museus, são usados pela guarda real.”