Meus papéis e minha pessoa foram, afinal, liberados e na 4.a hora tomei minha primeira refeição, desde o desjejum- almoço, muito cedo: uma ceia de mingau dekadik e fatias finas de pão de maçã.
A cidade era muito pequena para aquela multidão de funcionários. A Casa Comensal era menor que seu nome. A sala de jantar tinha uma mesa, cinco cadeiras e nenhuma lareira. O alimento vinha da pensão do vilarejo. A outra sala era o dormitório: seis camas, um bocado de poeira, um pouco de mofo. Eu estava só. Como todos pareciam ter ido para a cama logo após a ceia, fiz o mesmo. Adormeci naquele silêncio profundo do campo em que se ouvia o próprio zunido dos ouvidos. Dormi uma hora e acordei de repente, nas garras de um pesadelo de explosões, morte e conflagração. Era um sonho mau, daquela espécie em que você desce correndo uma rua estranha, no escuro, com um bando de desconhecidos, enquanto casas se incendeiam atrás e as crianças choram e gritam. Levantei-me correndo e acabei dando por mim no campo aberto, num terreno já devastado, ao lado de uma sebe escura. A meia-lua vermelho-escura e algumas estrelas apareciam entre as nuvens. O vento estava penetrantemente frio. Perto de mim, um grande estábulo ou celeiro se avolumava no escuro e a distância pude ver bolas de fogo e fagulhas subindo, levadas pelo vento. Estava descalço e de pernas nuas, só com camisa, sem calções nem casaco ou manto. Mas meu embrulho estava comigo; continha uma muda de roupa e o audisível, pois eu os usava como travesseiro quando viajava. Evidentemente eu me agarrava às minhas posses, mesmo dormindo. Peguei os sapatos, os calções e o manto de inverno forrado de pele e vesti-me, ali na escuridão e no frio do campo silencioso, enquanto Siuwensin se consumia no fogo, meia milha atrás. Procurei, depois, achar uma estrada e breve a encontrei, cheia de pessoas refugiadas como eu, mas que sabiam para onde se dirigir. Eu os segui, sem saber que caminho tomar. Sabia que devia me afastar de Siuwensin e na caminhada consegui informar-me de que os habitantes do lado de Passerer haviam efetuado um reide de pilhagem. Invadiram, puseram fogo em tudo e recuaram; não tinha havido luta. De repente, perto de nós, luzes cintilaram na escuridão e vimos uma fila de uns vinte veículos se dirigir para Siuwensin em alta velocidade, passando por nós com um relâmpago de luz e um chiar de rodas. Depois o silêncio e a escuridão de novo.
Acabamos chegando a uma fazenda comunal, onde fomos detidos e interrogados. Procurei ligar-me ao grupo com quem tinha vindo pela estrada; mas foi uma tentativa infeliz, pois eles também não haviam levado consigo seus papéis de identificação… Como estranhos sem passaportes, fomos separados do resto do rebanho e recebemos alojamento separado, onde teríamos que passar a noite: um celeiro, uma vasta adega de pedra sem janelas, onde fomos trancados por fora.
De vez em quando a porta era desaferrolhada e um novo refugiado era atirado lá dentro por um policial-fazendeiro, armado com a pistola sônica.
De portas fechadas, a escuridão era absoluta. Alguns olhos, cansados do negrume da cela, emitiam cintilações e faíscas rodopiantes no escuro. Fazia frio e o ar estava saturado de poeira e cheiro de cereal. Ninguém possuía uma lanterna de mão, pois aquela gente, como eu, fora arrancada de seus leitos. Um par estava praticamente nu e alguém lhes forneceu cobertores para se cobrirem. Nada possuíam; se tivessem podido levar alguma coisa, teriam levado seus papéis. Melhor estar nu do que sem documentos em Orgoreyn.
Ficaram todos sentados de maneira dispersa na escuridão. Alguns conversavam um pouco em voz baixa. Ninguém demonstrava qualquer sentimento de companheirismo em relação aos outros. Não havia queixas, propriamente. Ouvi um murmúrio ao meu lado:
— Eu vi aquele, do lado de fora de minha porta. Sua cabeça estava estourada.
— Eles usam aquelas espingardas que explodem pedaços de metal. Espingardas de caça.
— Tiena disse que eles não eram de Passerer, mas de Ovord; vieram de caminhão.
— Mas não há disputa entre Ovord e Siuwensin…
Eles não compreendiam, mas não se queixavam, não
protestavam por estarem encarcerados num buraco pelos próprios concidadãos, após terem sido caçados e seus lares queimados. Não procuravam encontrar razões para o que lhes sucedia. Os sussurros no escuro, naquele dialeto orgota, sinuoso, suave, que fazia as sílabas karhideanas parecerem foguetes estourando numa lata, foram, pouco a pouco, cessando. Dormiam. Uma criancinha choramingava de vez em quando, chorando ao eco de seu próprio choro.
Quando a porta se abriu, guinchando, já era dia alto. A luz do sol penetrou ofuscante e perfurante como uma faca nos olhos. Eu seguia atrás dos outros mecanicamente, tropeçando por vezes, quando ouvi chamarem meu nome. Não cheguei a reconhecê-lo de imediato, pois pela primeira vez meu nome era pronunciado com o “1”, corretamente. Alguém o estava repetindo a intervalos, desde que a porta se abrira.
— Por favor, Sr. Ai, por aqui — disse-me alguém apressadamente. Eu não era mais um refugiado. Fui posto em separado daqueles anônimos com quem partilhara a noite e a falta de identidade. Eu tinha nome conhecido e reconhecido; eu existia. Era um alívio, realmente. Segui meu guia alegremente.
O escritório da fazenda comunal local era confuso e desarrumado, mas arranjaram tempo para cuidar de mim, desculpando-se dos desconfortos da noite anterior.
— Não deveria ter escolhido Siuwensin para entrar na comensalidade! — lamentava um inspetor gordo. — Deveria ter usado as estradas de mais fácil acesso!
Eles não sabiam quem eu era ou por que eu deveria receber um tratamento melhor; sua ignorância era evidente, mas isto não fazia diferença. Genly Ai, o Enviado, tinha que ser tratado como uma pessoa que merecia deferências. E assim o foi. Pelo meio da tarde estava a caminho de Mishnory, num carro colocado à minha disposição pelo 8.° Distrito de Homsvashom Oriental. Tinha um passaporte novo, um passe livre para todas as casas de hospedagem no meu caminho e um convite telegrafado para a residência, em Mishnory, do Sr. Uth Shusgis, primeiro-comissário de estradas e portos do 1.° Distrito Comensal.
O rádio do pequeno carro funcionava enquanto rodava; assim, atravessei durante toda a tarde as grandes plantações de cereais das terras do leste, sem cercas (pois não há gado) e cheias de riachos, e, ao mesmo tempo, ia prestando atenção ao rádio. Os assuntos transmitidos eram: colheitas, tempo, condições das estradas, avisos para dirigir com cuidado, notícias dos trinta e três diferentes distritos, a produção de várias fábricas, dados sobre fretes marítimos, fluviais e dos portos. De vez em quando se ouvia a transmissão de certos cantos típicos do yomesh e depois, novamente, voltavam a falar do tempo. Era tudo muito ameno, depois das arengas de Erhenrang. Não houve nenhuma menção da invasão de Siuwensin; o governo orgota, evidentemente, procurava abafar o caso, e não exaltar os ânimos. O breve boletim oficial, repetido a intervalos, dizia simplesmente que a ordem estava sendo mantida ao longo da fronteira.
Eu gostava disto; era uma medida tranqüilizadora. Ademais, tinha a firmeza calma que eu sempre admirara nos gethenianos. A ordem seria mantida. Sentia-me satisfeito por estar fora de Karhide, uma terra incoerente, empurrada para a violência por um rei paranóico, grávido, e por seu regente, um egomaníaco.
Estava contente por estar dirigindo a vinte e cinco milhas por hora, através dos vastos campos de cereais, sob um céu cinzento, uniforme, em direção à capital cujo governo acreditava em ordem.