Vi Estraven saindo para a rua, uma figura encorpada e escura de encontro ao cinza-pérola da neve. Seu olhar vagou ao redor; ele ajustou o cinto solto do manto — não usava casaco — e desceu a rua, andando com uma ágil e peculiar graça, uma agilidade em todo o seu ser que lhe dava a aparência de ser a única coisa viva em toda Mishnory.
Retornei ao quarto aquecido. Era confortável mas muito abafado, com o aparelho de calefação, as cadeiras estofadas, a cama recoberta de peles, os tapetes, as cortinas, os abrigos e peliças.
Vesti meu casaco de inverno e saí para dar uma volta e arejar um pouco daquela atmosfera desagradável. Eu teria que almoçar, neste dia, com os comensais Obsle e Yegey e outros que encontrara na noite anterior, e seria apresentado a alguns desconhecidos. Em geral, o almoço é servido numa grande mesa, com as travessas arrumadas; come-se de pé, talvez para não termos a impressão de que passamos o dia todo sentados em torno de uma refeição. Mas esta era uma recepção formal e havia mesas com lugares para se sentar e o cardápio era enorme, com mais de vinte pratos, quentes ou frios, na maioria variações em torno de ovos e pão de maçã. Quando estávamos nos servindo, antes que se formalizasse a etiqueta de boa educação que prescrevia conversa de assuntos leves à mesa, Obsle observou-me:
— O comensal chamado Mersen é um espião de Erhenrang e Gaum é um agente reconhecido do Sarf, você já sabe, não?!
Falava despreocupadamente e riu-se como se tivesse feito uma brincadeira, deixando-me para cuidar de seu prato. Eu não tinha a menor idéia do que fosse o Sarf.
Quando o grupo começou a se sentar à mesa, um jovem aproximou-se do nosso anfitrião e falou-lhe algo discretamente. Yegey voltou-se logo para nós e disse:
— Novas de Karhide: o filho do Rei Argaven nasceu esta manhã e morreu logo a seguir.
Houve uma pausa silenciosa seguida de murmúrios. Então o jovem Gaum, sorrindo ironicamente, ergueu seu caneco de cerveja e fez um brinde:
— Vida longa a todos os reis de Karhide!
Alguns beberam com ele, mas a maioria não o fez.
— Por Meshe! Rir-se da morte de uma criança! — retrucou um velho gordo sentado ao “meu lado, com suas botas altas em torno das coxas, semelhantes a saias, e a fisionomia carregada de desagrado pelo mau gosto do brinde.
Começou-se a discutir quais dos seus filhos porkemmering o Rei Argaven iria escolher como herdeiro, pois ele já passara dos quarenta e não teria mais filhos carnais; por quanto tempo Tibe continuaria como regente, etc. Alguns achavam que a regência terminaria logo, outros duvidavam disso.
— O que pensa disso, Sr. Ai? — perguntou-me Mersen, o tipo que Obsle me identificara como agente de Karhide e, obviamente, uma pessoa da confiança de Tibe. E continuou insistindo: — O senhor acaba de chegar de Erhenrang; o que há de verdade nesses rumores de que Argaven, na realidade, abdicou sem proclamação, entregando as rédeas a seu primo?
— Bem, ouvi rumores também sobre isto.
— Pensa que tenham alguma base concreta?
— Não tenho a menor idéia…
Neste ponto, o anfitrião começou a falar do tempo, pois todos já haviam começado a refeição.
Após os empregados terem retirado os pratos e a montanha de restos de assado e conservas, sentamo-nos todos em torno de uma longa mesa e aí foram servidos pequenos cálices de um licor muito forte — aqua-vita. E passaram a me fazer perguntas.
Desde os meus exames feitos pelos médicos e cientistas de Erhenrang, eu não tinha me defrontado com pessoas tão ansiosas em me fazer perguntas. Poucos karhideanos, mesmo entre os pescadores e fazendeiros com quem passara meus primeiros meses, procuraram satisfazer sua curiosidade, que era intensa, por meio de simples interrogatório. Eles eram introvertidos, indiretos, fechados, não gostavam de perguntas e respostas. Lembrei-me do que Faxe me dissera quanto a respostas… Mesmo os técnicos haviam limitado suas perguntas estritamente ao campo profissional, tais como a fisiologia do meu ser, funções circulatórias e glândulas nas quais eu diferia enormemente do padrão getheniano. Eles nunca chegaram a perguntar, por exemplo, como a sexualidade contínua da minha raça influenciava as instituições sociais e como lidávamos com o nossokemmer permanente. Escutavam quando lhes falava; os psicólogos ficavam atentos quando lhes informava sobre a comunicação mental, mas nenhum deles chegou a fazer indagações gerais que lhes possibilitassem uma visão adequada do que fosse uma sociedade terrestre ou ecumênica, isto é, com exceção de Estraven.
Aqui, entretanto, não estavam tão presos às considerações concernentes a prestígio e orgulho pessoais, e perguntas não eram consideradas insultos, quer para quem as fizesse quer para quem respondesse a elas. Verifiquei logo que alguns deles estavam ali para descobrir se eu era uma fraude. Isto me deixou desconcertado, mas por pouco tempo. Eu encontrara incredulidade, mas raramente má fé. Tibe fizera uma exibição elaborada de “como levar avante esta farsa”, no dia da parada em Erhenrang, mas agora eu sabia que isto fazia parte do jogo que fizera para desmoralizar Estraven. Eu mesmo estava certo de que Tibe acreditava realmente em mim. Afinal, ele tinha visto a nave que me levara ao seu planeta; teve livre acesso a todas as informações concernentes ao meu transporte e ao meu audisível, pelos relatórios que foram feitos. Nenhum destes orgotas tinha visto a nave. Poderia mostrar-lhes o audisível, mas ele não era um instrumento muito convincente, pois era difícil demais para ser compreendido, tanto se usado para fazer truques como para provar a realidade. A velha Lei de Embargo Cultural se opunha à importação do audisível, e assim não tinha em meu poder nada além da nave, do aparelho, da caixa de retratos, da peculiaridade inconteste do meu corpo e da singularidade duvidosa de minha mente. Os retratos passavam de mão em mão e eram examinados com aquela expressão neutra que se vê no rosto dos que olham fotos de família de outras pessoas. O interrogatório continuou.
— O que é o Conselho Ecumênico, um mundo? Uma liga de mundos? Um lugar, um governo? — indagou Obsle.
— Bem, tudo isso e nada disso. Conselho Ecumênico é uma expressão nossa, terrena. Na linguagem vulgar significa família; em karhideano seria o “lar”. Em orgota não sei, não estou bem seguro, pois não conheço bem a língua. Creio que não seria a comensalidade, embora haja semelhança entre o governo comensal e o ecumênico. Mas é, essencialmente, uma forma de governo. É uma tentativa de unificar o místico com o político e, como tal, é quase um fracasso; mas este fracasso tem feito mais bem à humanidade que o sucesso dos seus predecessores. É uma sociedade e contém, pelo menos em potencial, o fator cultura. É uma forma de educação, sob certo aspecto; é uma espécie de grande universidade, imensa mesmo. Na sua essência estão as forças da comunicação e da cooperação, e, sob outro ângulo, é uma espécie de liga ou união de mundos, possuindo em certo grau uma organização convencional centralizada. É este aspecto — o da liga — que eu agora estou representando. O Conselho Ecumênico, como uma entidade política, funciona através de coordenação e não de regras. Não impõe leis, as decisões são tomadas por consentimento de um conselho, não por ordens ou consenso geral. Como uma entidade econômica, é imensamente ativa, procurando comunicação interespacial e mantendo o equilíbrio comercial entre oitenta mundos, oitenta e quatro mais precisamente, se Gethen entrar na sua esfera…
— O que você quer dizer com “não impõe suas leis”? — perguntou Slose.
— Não tem nenhuma. Os Estados membros têm as suas próprias leis; quando elas conflitam entre si, intervém como mediador, tenta fazer um ajustamento legal ou ético, ou confronto, ou escolha, conforme for o caso. Mas se eventualmente o conselho, como uma experiência de superorganização, falhar, terá que se transformar numa força mantenedora da paz, manter uma polícia, etc. Até agora não foi necessário. Todos os principais mundos estão se recuperando de uma era desastrosa, ocorrida há um par de séculos; recuperando idéias e habilidades perdidas, aprendendo a falar novamente… — Como eu poderia explicar a Idade da Agressão e seus efeitos posteriores para um povo que ainda não tinha nem sequer a palavra “guerra”?!