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A neve ainda caía, com um ameno vento primaveril, muito mais agradável que a chuva ininterrupta do degelo que acabara. Dirigi-me ao palácio, sob uma nevasca silen­ciosa, no pálido anoitecer. Perdi-me no caminho apenas uma vez. O palácio de Erhenrang é como uma fortaleza, uma selva murada de palácios, torres, jardins, pátios, claustros, passadiços cobertos, túneis, pequenas florestas e torres de sentinela, produto de séculos de paranóia em grande escala.

Em meio a tudo isso, surgem as paredes avermelhadas e sombrias da casa real, que embora em desuso temporário é habitada unicamente pelo rei. Todos os demais, emprega­dos domésticos, funcionários civis, lordes, ministros, parlamentares, guardas, etc., dormem em outro palácio ou fortaleza, quartel ou casas, dentro das muralhas.

A casa de Estraven era a Residência da Esquina Ver­melha, sinal de notável honraria real, construída há quatro­centos e quarenta anos para Harmes, o bem-amado compa­nheiro de Emran III, cuja beleza ainda é celebrada, e que foi raptado, mutilado e imbecilizado pelos capangas da Fac­ção Innerland. Emran III morreu quarenta anos depois, ainda saciando sua vingança naquele infeliz país. Ele era mais conhecido como Emran, o Desgraçado.

Sua tragédia é tão antiga que todo o seu horror se diluiu com o tempo, mas uma certa atmosfera de infelicidade e melancolia ficou impregnada nas pedras e sombras da casa.

O jardim era pequeno e murado. Árvores secas debru­çavam-se sobre uma piscina de pedra. Através das faixas de luz das janelas da casa eu via flocos de neve caindo junto com os esporos das árvores nas águas turvas da piscina.

Estraven me esperava de cabeça descoberta e desagasalhado, no frio, observando aquela incessante e secreta queda de flocos e sementes no anoitecer. Cumprimentou-me silenciosamente e conduziu-me para o interior da casa. Não havia outros convidados. Admirei-me com isto, mas fomos logo para a mesa e, claro, não se conversa de negócios às refeições… Além do mais, meu espanto foi dirigido para a refeição: era preparada de maneira deliciosa, mesmo contan­do com os eternos e comuns pães de maçã, que se transfor­maram em algo especial nas mãos de um cozinheiro experi­mentado, a quem não poupei elogios.

Após a ceia, bebemos cerveja quente junto à lareira. Num mundo onde o utensílio mais comum é um pequeno quebra-gelo para partir a crosta gelada que se forma no seu copo, entre dois goles, uma cerveja assim é para ser apre­ciada!

Estraven conversara amavelmente à mesa. Agora, sen­tado na frente da lareira, diante de mim, estava calado. Ape­sar de já estar há dois anos em Inverno, ainda me sentia incapaz de ver o povo do planeta sob seu próprio ângulo. Eu bem que tentava entendê-los, forçando-os a pertencerem a um dos gêneros — masculino ou feminino —, classificação tão inútil à natureza deles, mas essencial à nossa. Assim, bebericava a minha cerveja amarga e fumegante e lembrava que, à mesa, a atitude de Estraven fora bem feminina, todo ele charme e tato, faltando-lhe substância máscula.

Seria essa feminilidade suave e fácil que me desagra­dava e me levava a desconfiar dele? Por outro lado, era im­possível pensar nele como uma mulher; não aquela figura escura, irônica e poderosa ali ao meu lado, na escuridão que­brada apenas pela luz da lareira… No entanto, quando pen­sava nele como homem, havia algo falso, de impostura. Seria nele ou em minha atitude em relação a ele? Sua voz era macia, não profunda; não chegava a ter um timbre masculi­no, embora tampouco feminino. . . Mas o que ele estava dizendo?

— Sinto muito — dizia ele — ter adiado por tanto tempo o prazer de tê-lo em minha casa. Mas, afinal, sinto-me satisfeito na medida em que não é mais necessário haver qualquer problema de prestígio político entre nós.

Fiquei intrigado com isso. Ele havia sido meu introdu­tor e patrocinador na corte até aquele momento. Quereria dizer que a audiência que me conseguira com o rei, para o dia seguinte, me colocara no mesmo nível dele?

— Não sei se estou compreendendo… — disse-lhe.

Foi a sua vez de ficar surpreendido.

— Bem, você há de entender — disse finalmente —, há de compreender que de agora em diante… não estou mais agindo a seu favor junto ao rei, é claro…

Estraven falava como se tivesse vergonha de mim, não de si próprio. Havia, nitidamente, um sentido no seu con­vite e no fato de eu haver aceitado que me escapara. Porém meu erro foi quanto à educação; o dele, quanto à moral. Tudo o que pensei foi que tinha acertado em não confiar nele. Estraven não era apenas hábil e poderoso: era também infiel.

Durante todos esses meses em Erhenrang fora ele quem me escutara, quem respondera às minhas perguntas, pro­curara médicos e engenheiros para me examinarem e à minha nave; apresentara-me às pessoas que precisava conhecer e lentamente me erguera do status inicial com que tinha sido recebido — um fenômeno altamente imaginoso — até o meu atual reconhecimento, como o Enviado misterioso que seria recebido pelo rei. Agora que me havia colocado nesta alta e perigosa posição, ele me participava que ia retirar seu apoio.

— Você me fez confiar em seu apoio.

— Foi um erro.

— Você quer dizer que, tendo obtido esta audiência, você não falou ao rei a favor da minha missão como havia…

Tive o bom senso de parar antes da palavra “prome­tido”.

— Não posso.

Eu estava muito aborrecido, mas não havia nele nem zanga nem preocupação.

— Pode me dizer por quê?

Após uns instantes respondeu que sim e parou para pensar de novo. Neste momento passou-me pela cabeça que um alienígena, indefeso e inepto, não deveria pedir satis­fações ao primeiro-ministro de um reino, especialmente quan­do ele não compreendia, e talvez nunca chegasse a com­preender, os alicerces desse poder e do governo desse reino. Sem dúvida, tratava-se de uma questão de prestígio, esse intraduzível e todo-poderoso princípio de autoridade social em Karhide e de toda a civilização getheniana. E, como tal, não conseguia compreendê-lo.

— Você ouviu o que o rei me disse hoje, na ceri­mônia?

— Não.

Estrâven inclinou-se para a frente da lareira, retirou o jarro de cerveja das brasas quentes e tornou a encher meu canecão. Não disse mais nada. Eu então continuei:

— O rei não falou com você na minha presença.

— Nem na minha — retrucou.

Percebi que estava perdendo outra pista. Maldita tor­tuosidade efeminada!

Retomei a palavra:

— Está tentando me dizer, Lorde Estraven, que caiu no desagrado real? — Pensei que ele fosse ficar zangado com a minha observação, mas não mostrou nenhum sinal disso. Acrescentou apenas:

— Não estou tentando lhe dizer nada, Sr. Ai!

— Por Deus! Eu bem que gostaria!

Ele olhou para mim, com curiosidade.

— Bem, então veja a coisa por este ângulo: há pessoas na corte que estão nas boas graças do rei, mas não estão a favor de sua missão e de sua presença aqui.

“E assim”, pensei eu, “você está se apressando a juntar-se a eles, vendendo-me, para salvar sua pele.” Mas era inútil dizer-lhe tais coisas.