Shusgis bufou e acenou vigorosamente como que aprovando sua própria opinião, e sorriu para mim, o sorriso de um homem cheio de virtudes para com um seu igual.
O carro deslizava suavemente através das ruas largas e bem-iluminadas. A neve matutina havia se derretido, exceto os amontoados junto às sarjetas; estava caindo uma chuva miúda agora. Os grandes edifícios do centro de Mishnory, escolas e repartições do governo estavam tão imprecisos através da chuva que, vistos assim, pareciam se dissolver. Os contornos eram vagos, as fachadas escorridas, úmidas, manchadas. Havia algo de fluido, insubstancial nesta cidade, paradoxalmente pesada, como que construída de monólitos, nesse Estado que era também monolítico no todo e nas partes. E Shusgis, meu jovial anfitrião, um homem pesado, substancial, era também, com seus contornos imprecisos, um tanto vago, ligeiramente irreal.
Desde que eu atravessara de carro, há quatro dias, os campos dourados de Orgoreyn, começando meu progresso triunfal em direção ao santuário intimista de Mishnory, sentia que me faltava algo. Mas o quê? Sentia-me ilhado. Não tinha mais sentido frio ultimamente. As salas eram decentemente aquecidas ali. Não tinha mais me alimentado com prazer; a comida orgota é insípida. Tudo bem. Mas por que as pessoas que eu encontrava, quer bem ou mal dispostas em relação a mim, me pareciam também insípidas? Havia personalidades marcantes entre elas — Obsle, Slose, o belo e detestável Gaum —, no entanto, faltava a elas uma certa qualidade, uma certa dimensão como ser; elas não convenciam, não eram completamente sólidas, pensei. Era como se fossem seres sem alma.
Essa espécie de especulação exagerada fazia parte essencial do meu trabalho. Sem uma certa habilidade para isto, eu não poderia ter qualidades como móbile, e eu recebera um treinamento formal em Hain, onde me haviam reconhecido como dotado de percepção extra-sensorial. O que se busca com isto pode ser descrito como a percepção intuitiva de uma inteireza moral; e ela deve se expressar, além do mais, não em símbolos racionais mas em metáforas. Eu nunca fora um sensitivo muito notável e nesta noite, muito cansado, eu duvidava de minhas próprias intuições.
Quando me encontrei nos meus aposentos, tomei um banho bem quente. Mas mesmo assim permaneceu em mim um vago mal-estar, como se aquela água quente não fosse real e palpável, e não se pudesse confiar nela.
XI
Diário de um exilado
Mishnory. Streth susmy (6° dia do segundo mês de outono). Não tenho muitas esperanças; entretanto, tudo leva a crer que não devemos perdê-las. Obsle pechincha e barganha com seus companheiros comensais; Yegey usa da lisonja; Slose faz prosélitos e a força da sua causa ganha vigor. São homens astutos e têm sua facção sob controle. São apenas sete, dos Trinta e Três, da facção Mercado Comum, e de toda a confiança; quanto aos demais, Obsle pensa em ganhar o apoio certo de dez, o que lhe dá a maioria por um fio.
Um deles parece ter um interesse autêntico no Enviado: é o Comensal Ithepen, do distrito de Eynyen, que ficou muito curioso sobre sua missão, desde quando trabalhava para o Sarf e tinha o encargo de censurar as emissões de rádio que eram captadas de Erhenrang. Ele parece carregar o peso dessas supressões na consciência. Propôs a Obsle que os Trinta e Três anunciem seu convite à nave estelar, não apenas aos seus compatriotas, mas também a Karhide, solicitando a Argaven juntar-se a este convite. Um plano realmente nobre, mas que não será executado. Não irão pedir a Karhide para juntar-se a eles em coisa alguma.
Os homens do Sarf, entre trinta e três comensais, naturalmente opõem obstáculos à presença do Enviado e à sua missão aqui. Quanto aos indecisos e indefinidos que Obsle espera conquistar, acho que temem o Enviado, tanto quanto Argaven e sua corte o temiam, apenas com uma diferença: Argaven o considerava louco como ele próprio, enquanto aqui eles o julgam mentiroso, como eles o são. Temem estar engolindo um sapo em público, o que já fora recusado por Karhide, uma farsa, talvez inventada por Karhide. Eles fazem o convite e o fazem publicamente — e o que vai acontecer ao seu prestígio pessoal, se isto falhar e a nave estelar não aparecer? Na verdade, Genly Ai exige de nós demasiada confiança. Para ele, claro, não é demasiada.
Obsle pensa, como Yegey, que uma maioria do Conselho dos Trinta e Três será persuadida a confiar nele. Não sei bem por que eu tenho menos esperanças do que eles; talvez, no fundo, não deseje que Orgoreyn tenha uma atitude mais esclarecida que Karhide, enfrentando os riscos e ganhando a parada, deixando Karhide na sombra. Se essa inveja é patriótica, está chegando tarde; logo que vi a intenção de Tibe em me expulsar, fiz tudo o que pude para assegurar a entrada do Enviado em Orgoreyn, e, aqui no exílio, não medi esforços para conquistá-los para sua causa.
Graças ao dinheiro que ele me trouxe, dado por Ashe, vivo independente agora, como “unidade” e não como “dependente”.
Não vou mais a banquetes. Não sou visto em público com Obsle ou outros membros de apoio do Enviado e não o tenho visto, mesmo, há quase meio mês, desde o seu segundo dia em Mishnory. Ele me entregou o dinheiro de Ashe como quem paga uma quantia estipulada a um assassino profissional. Nunca estive tão ofendido como então, e insultei-o deliberadamente. Eu sabia que estava zangado, mas não estou certo de que ele tivesse compreendido o insulto — ele pareceu aceitar meu conselho, a despeito da maneira como o dei. Quando a minha indignação esfriou, senti isto, e fiquei preocupado. Seria possível que durante toda a sua estadia em Erhenrang ele buscasse meu conselho, sem saber como dizer-me que ele o queria? Se assim foi, então ele não entendeu nada do que lhe dissera, especialmente no dia da parada, à noite, sentados à lareira do palácio.
Seu orgulho pessoal deve ter base própria; é construído e sustentado, embora de modo diferente do nosso; enquanto eu pensava estar sendo grosseiro e vulgarmente franco com ele, talvez me achasse excessivamente sutil e confuso. Seu desajeitamento é ignorância. Sua arrogância também é ignorância. Ele não sabe quem somos, como nós ignoramos o que ele é. Ele é, na realidade, um completo alienígena, e eu sou um idiota, deixando minha sombra obscurecer a luz da esperança que ele nos trouxe. Tenho que reprimir a minha vaidade humana. Tenho que me afastar do seu caminho, pois está claro que é isto que ele deseja. Ele está certo. Um traidor exilado não é um bom defensor de sua causa.
De acordo com a legislação orgota que determina que cada “unidade” deve ter uma ocupação, trabalho numa fábrica de plástico, da hora oitava até o meio-dia. É um trabalho fáciclass="underline" manobro uma máquina que liga peças de plástico para formar pequenas caixas transparentes que não sei para que são usadas.
De tarde, livre de ocupações, retomei as antigas disciplinas físicas e mentais que aprendi em Rotherer. Fiquei contente em ver que não perdi minhas habilidades na concentração da força de dothe ou em entrar em transe. Mas saio dele sem benefícios reais, assim como no treino de quietude e jejum. Parece que nunca os aprendi e tenho que começar tudo de novo, como uma criança. Jejuei um dia, e como minhas entranhas protestaram! Imagino uma semana! Um mês!
As noites estão geladas agora; hoje à noite um vento duro traz chuva gelada. Toda a noitinha fiquei pensando em Estre, pois o som do vento aqui se assemelha ao de lá. Escrevi para meu filho uma longa carta. Enquanto escrevia, senti, de novo, a presença de Arek, como se estivesse vivo, ao meu lado. Por que, afinal, escrevo estes apontamentos? Para meu filho ler? Não vai lhe fazer nenhum bem. Talvez para estar em contato com minha terra, usando minha própria língua.
Harhahad susmy (9.° dia do segundo mês do outono). Nenhuma notícia do Enviado foi até agora emitida pelo rádio, nenhuma palavra. Fico pensando se Genly Ai percebe que em Orgoreyn, a despeito de todo aquele aparato governamental, nada é feito visivelmente, nada é dito em voz alta. A máquina governamental esconde as maquinações políticas. Tibe quer ensinar Karhide a mentir. Toma lições com Orgoreyn; sem dúvida, uma boa escola. Mas creio que teremos dificuldades em aprender a mentir, tendo praticado há tanto tempo a arte de fazer rodeios em torno da verdade sem alcançá-la; contornando-a, mas sem mentir.