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Uma grande operação de saque feita pelos orgotas atra­vés do Ey queimou os celeiros de Tekember. Exatamente o que o Sarf quer e o que Tibe deseja. Aonde isto vai nos levar?

Slose cabalizou todo o seu misticismo yomesh para as afirmações do Enviado e interpreta a vinda dos ecúmenos como a vinda do reino de Meshe entre nós; com isto se afasta da realidade.

“Devemos parar essa rivalidade com Karhide antes de o Novo Homem aparecer”, diz ele, “devemos limpar nos­sos espíritos e prepará-los para sua vinda. Temos que nos livrar do orgulho, proibir todos os atos de vingança e nos unirmos, sem inveja, como irmãos de um mesmo lar.”

Mas como? Como quebrar esse círculo vicioso?

Guyrny susmy (10.° dia do segundo mês do outono). Slose chefia um comitê que propõe suprimir as peças obsce­nas representadas nas casas públicas de kemmer. Elas devem ser semelhantes às huhuth karhideanas. Slose se opõe a elas porque são vulgares, baixas e blasfemas. Mas opor-se a algo é mantê-lo.

Dizem que “todos os caminhos levam a Mishnory”. Certo, se você volta as costas a Mishnory e se afasta de lá, ainda está no seu caminho. Opor-se à vulgaridade é, inevita­velmente, ser vulgar. Você deve procurar outro caminho, ter outro objetivo, assim você pode trilhar outra estrada.

Hoje, Yegey falou na reunião dos Trinta e Três:

“Eu me oponho terminantemente ao bloqueio da ex­portação de cereais a Karhide e ao espírito de competição que o motiva”.

Correto, mas ele não vai se libertar da estrada de Mish­nory indo por este caminho. Tem que apresentar a outra alternativa. Orgoreyn e Karhide têm que mudar o rumo que ambos estão tomando — devem procurar outra direção e quebrar esse círculo maléfico. Yegey, assim penso, deveria falar apenas do Enviado e nada mais. Ser um ateísta é man­ter Deus presente. Sua existência ou não-existência leva à mesma coisa no plano da prova. Assim, “prova” não é uma palavra que se use bastante entre os handdaratas, que esco­lheram não encarar Deus como um fato, sujeito tanto à prova quanto à fé, e eles quebraram o círculo que os prendia e saíram livres.

Saber quais as perguntas que são irrespondíveis e não responder a elas — esta qualidade é muito útil em tempos de tensão e de trevas.

Tormenbod susmy (13.° dia do segundo mês do ou­tono). Meu mal-estar aumenta. Nenhuma palavra sobre o Enviado foi proferida ainda no rádio pela Emissora Central. Nenhuma das notícias que costumávamos irradiar em Erhenrang foi jamais liberada aqui e os boatos sobre recepções ilegais de emissões radiofônicas nas fronteiras e as histórias de viajantes e comerciantes nunca se espalharam muito por aqui. O Sarf tem um completo controle sobre as comunica­ções, mais do que eu imaginava ser possível. Isso é assus­tador.

O rei e a Kyorremy de Karhide têm bastante controle sobre o povo, mas muito pouco sobre o que ouvem e ne­nhum sobre o que dizem. Aqui o governo pode controlar não só os atos como também o pensamento. É óbvio que ninguém deveria ter tal poder sobre os outros.

Shusgis e os outros andam abertamente com Genly Ai pela cidade. Fico pensando se ele percebe que esta abertura esconde o fato de que ele é, na realidade, um desconhecido. Ninguém sabe que está aqui. Perguntei aos meus companheiros na fábrica e não sabem de nada. Pensam que estou fa­lando de algum fanático e louco sectário de Yomesh. Não há nenhuma informação, nenhum interesse, nada que possa ajudar sua causa ou proteger sua vida. É uma pena que ele se pareça tanto conosco. Em Erhenrang, o povo o apontava na rua porque sabiam algo dele, falavam dele e sabiam que ele lá estava. Aqui, onde sua presença é mantida em segredo, ele passa sem ser notado. Eles o olham do modo como o fiz pela primeira vez: um jovem forte e moreno, um pouco fora do comum quanto à altura e com aparência de estar entrando em kemmer. Estudei os dados fornecidos pelos médicos, no ano passado, e nele as diferenças são marcantes. Não são superficiais. Deve-se conhecê-lo para saber o quanto ele é alie­nígena. Por que, então, eles o escondem? Por que um dos comensais não força a mão e fala dele em público ou pelo rádio? Mesmo Obsle, por que está silencioso? Por medo, é claro. Meu rei temia o Enviado; esses camaradas daqui te­mem uns aos outros. Creio que eu seja a única pessoa em quem Obsle confia, porque sou um estrangeiro. Ele sente prazer na minha companhia e eu na dele; muitas vezes pe­diu-me conselhos, com toda a franqueza. Mas quando eu o pressiono para falar, para despertar o interesse público como uma defesa contra as intrigas entre facções, ele não me atende.

“Se toda a comensalidade estivesse de olho no Envia­do, o Sarf não ousaria tocar nele, ou em você.”

Obsle suspira:

“Sim, eu sei, mas não podemos fazê-lo, Estraven. O rádio, boletins impressos, periódicos científicos, tudo está nas mãos do Sarf. Que é que posso fazer? Discursos nas esquinas como algum pregador fanático?”

“Bem”, respondo-lhe, “pode-se fazer algo como falar ao povo, pôr em marcha uma onda de rumores; eu tive que fazer uma coisa assim, ano passado, em Erhenrang. Fazer com que o povo faça perguntas para as quais você tem res­posta, isto é, o Enviado as tem.”

“Se ao menos ele trouxesse aquela danada da nave para cá, para que tivéssemos algo para mostrar ao povo… Mas como está…”

“Ele não trará a nave aqui a não ser que ele saiba que vocês estão agindo de boa fé.”

“E não estou?!”, exclama Obsle inchando como um sapo. “Não gastei todo o meu tempo o mês passado neste assunto? Boa fé! Ele espera que acreditemos no que diz e, em troca, não confia em nós?”

“Ele deveria?”

Obsle bufa, mas não replica. Ele é o mais honesto dos membros do governo orgota que conheço.

Odgetheny susmy (14.° dia do mês do outono). Para ser uma alta patente no Sarf tem-se que possuir, assim me pa­rece, uma certa forma complexa de estupidez. Gaum é um bom exemplo. Ele me encara como um agente de Karhide tentando conduzir Orgoreyn a uma tremenda perda de pres­tígio, persuadindo seu governo a acreditar na farsa de um enviado do Conselho Ecumênico; ele pensa que passei meu tempo como primeiro-ministro na preparação de tal plano. Por Deus! Tenho coisa melhor a fazer do que gastar meu prestígio com a ralé. Mas isto é uma coisa elementar que ele não está capacitado para ver. Agora que Yegey, aparen­temente, se libertou de mim, Gaum pensa que eu posso ser comprado e assim se preparou para fazê-lo à sua própria maneira. Ele tem me observado ou mandou me espionar, de modo que ficou sabendo que eu deveria entrar emkemmer no dia 12 ou 13; assim, a noite passada, ele me apareceu em pleno kemmer, induzido por hormônios, evidentemente, pronto para me seduzir. Encontramo-nos, por acaso, na Rua Pyenfen.

“Harth! Não o tenho visto há muito tempo; por onde tem se escondido ultimamente? Então, vamos tomar uma cerveja juntos?”

Escolheu uma cervejaria próxima de uma casa pública de kemmer. Pediu aqua-vita e não cerveja. Ele não queria perder tempo. Após o primeiro copo, colocou sua mão na minha e aproximando seu rosto do meu, murmurou:

“Não nos encontramos por acaso, estava à sua espera. Eu o desejo como meu parceiro esta noite.” E me chamava pelo primeiro nome.