Выбрать главу

Como já disse antes, não eram cruéis, mas tampouco bondosos. Eram relaxados e não se importavam com as coi­sas, desde que ficassem longe de encrencas. Deixavam-nos, a mim e a outros prisioneiros, ficar no dormitório, nos nos­sos sacos de dormir como em observação, quando era óbvio que mal nos podíamos manter de pé.

Fiquei muito doente após o último interrogatório, como também um outro companheiro, um sujeito de meia-idade que tinha uma doença do fígado e estava morrendo. Como morria lentamente, deixavam-no ficar lá no seu beliche a maior parte do tempo. Foi a pessoa que ficou mais nítida na minha memória, nas lembranças de Pulefen. Ele era, fisicamente, um getheniano típico, de estrutura compacta, per­nas e braços curtos, com uma espessa camada de gordura subcutânea dando-lhe uma aparência rotunda ao corpo, mesmo doente. Tinha mãos e pés pequenos, cadeiras largas e peito fundo, com os mamilos pouco mais desenvolvidos que a média dos homens da minha raça. A pele era castanho- escura, os cabelos pretos finos e com aparência de pêlo de animal. O rosto era largo, as feições bem delineadas, mas pequenas, e as maçãs do rosto salientes. É um tipo racial bastante parecido com alguns dos grupos terrenos que vivem em grandes altitudes ou nas zonas árticas. Seu nome era Asra; tinha sido carpinteiro.

Conversávamos. Asra não se preocupava em viver, assim imaginei, mas tinha medo da morte. Procurava distrair seu pensamento e afastar esse medo. Tínhamos pouco em comum, a não ser essa proximidade da morte, e isto não era assunto sobre que desejássemos conversar; assim, a maior parte das vezes não nos entendíamos bem. Isto também não lhe importava. Eu, mais jovem e incrédulo, gostaria muito que houvesse compreensão mútua, explicações. Mas não havia. Então falávamos. A noite, o alojamento brilhava com luzes fortes, barulhento e cheio de gente. Durante o dia as luzes eram apagadas e o grande alojamento era silencioso, vazio e penumbroso. Ficávamos em dois beliches juntos e falávamos em voz baixa. Asra gostava muito de contar lon­gas histórias cheias de meandros sobre sua juventude numa fazenda comensal, no vale de Kunderer, aquela vasta e es­plêndida planície que eu atravessara ao entrar no país, a caminho de Mishnory.

Seu dialeto era marcante e usava muitos termos que eu não conhecia, nomes de pessoas, de lugares, costumes, instrumentos, e assim eu apenas conseguia acompanhar a linha do seu pensamento. Quando ele se sentia melhor, no meio do dia, perguntava-lhe sobre um mito, uma fábula. A maior parte dos gethenianos é bem abastecida desses assuntos. Sua literatura é quase toda oral, embora existam textos escritos, e são, num sentido bem amplo, bastante literários. Asra co­nhecia as narrativas orgotas mais importantes, as pequenas parábolas de Meshe, a história de Parsidy, grande parte dos épicos e as sagas dos navegantes. Estes e outros trechos do folclore, ele os contava, lembrando sua infância, no seu dia­leto meio ininteligível, e depois, cansando-se, calava-se e pe­dia-me que lhe contasse outros.

— O que eles contam em Karhide? — perguntava, esfregando suas pernas que o atormentavam com dores e aguilhoadas, voltando para mim seu rosto com um sorriso tímido e paciente. Uma vez respondi-lhe:

— Sei de uma história de povos que vivem noutros mundos…

— Que espécie de mundo seria?

— Um como este, parecido em quase tudo, só que ele não gira em torno deste sol. Ele gira em torno de uma estrela que vocês chamam de Selemy. É uma estrela ama­relada, como o sol, e nesse mundo vive outra gente.

— Isso está nos ensinamentos de Sanovy, essa coisa sobre outros mundos. Havia um velho pastor, meio louco, do culto de Sanovy, que vinha ao nosso lar quando eu era criança e contava-nos histórias: para onde os mentirosos vão quando morrem, para onde os suicidas vão, e para onde vão os ladrões. É para lá que iremos, eu e você, hein? Para um desses lugares?!

— Não, este mundo de que eu falo não é o mundo dos espíritos. É um mundo real. A gente que vive lá é gente real, verdadeira, viva como a daqui. Mas há muito, muito tempo, eles aprenderam a voar.

Asra fez uma careta.

— Não batendo asas, como está pensando, aprenderam a voar em máquinas, veículos como os carros. — Mas isto era difícil de explicar na língua orgota, que não tem uma palavra precisa para o significado de voar; o vocábulo mais próximo seria deslizar. — Bem — continuei —, eles cons­truíram máquinas que subiam no ar como o trenó desliza na neve, E após um certo tempo aprenderam como fazê-las movimentar-se cada vez mais rápidas e mais longe, até que se tornaram mais velozes que uma pedra lançada por atiradeira. Então ultrapassaram as nuvens e foram por aí afora, até chegar a um outro mundo que também girava em torno de um outro sol. Quando chegaram lá, também encontraram homens…

— Deslizando pelo ar?…

— Talvez sim, talvez não. Quando chegaram ao meu mundo nós já sabíamos como nos locomover no ar. Mas nos ensinaram como voar de um mundo para outro. Nós ainda não tínhamos máquinas capazes disso.

Asra estava intrigado pela introdução do narrador na narrativa. Eu estava febril pelo efeito das drogas e não sabia mais como continuar a história.

— Continue — dizia ele, tentando dar sentido às coi­sas que ouvia. — Que faziam eles além de andar no ar?

— Ah, o mesmo que o povo daqui faz. Só que eles estão sempre em kemmer. — Ele deu um sorriso zombe­teiro. Não há nenhuma possibilidade de despistamento nesta vida e meu apelido entre os prisioneiros e guardas era infa­livelmente o mesmo: pervertido. Mas onde não há desejo nem desonra, ninguém, mesmo sendo anômalo, é isolado. E creio que Asra não fazia nenhuma conexão desta noção comigo e minhas peculiaridades. Ele as encarava, meramen­te, como uma variação do velho tema, e assim repetiu:

— Em kemmer, todo o tempo… É então um lugar de prazer? Ou um lugar de punição?

— Não sei, Asra. O que é este mundo aqui?

— Nem um nem outro, meu jovem. Isto aqui é o mundo como ele é, apenas. Você nasce nele e… as coisas são como são…

— Não nasci nele. Eu vim para ele. Eu o escolhi.

O silêncio e a penumbra nos rodeavam. Fora, distante, no campo, além da prisão, havia apenas um remoto sussurro de som, uma serra rangendo, nada mais.

— Ah, bem… sendo assim… — murmurou e logo suspirou, esfregando as pernas doloridas, com um fraco ge­mido, de que ele mesmo nem se apercebeu.

— Nenhum de nós escolhe… — disse afinal.

Duas noites depois entrou em coma e logo morreu. Nunca cheguei a saber por que crime, falta ou irregularidade ele fora levado para as fazendas voluntárias. Sabia apenas que lá estava há menos de um ano.

No dia seguinte ao de sua morte, eles me mandaram buscar de novo para outro exame; desta vez tiveram que me carregar e não consigo me lembrar de mais nada depois.

XIV

A tenebrosa fuga

(do diário de Estraven)

Quando Obsle e Yegey se ausentaram da cidade e o vigia da casa de Slose impediu minha entrada, senti que esta­va no momento de voltar-me para os meus inimigos, pois nada mais podia obter dos amigos. Fui ao Comissário Shusgis e preparei-lhe uma chantagem. Como não tinha dinheiro su­ficiente para comprá-lo, pus em jogo minha reputação. Entre os pérfidos, o nome de traidor encabeça a lista. Contei-lhe que estava em Orgoreyn como agente da facção dos nobres de Karhide, que estava planejando o assassinato de Tibe, e que ele tinha sido escolhido como meu contato com o Sarf; se ele se recusasse a me dar a informação de que necessitava, eu passaria outra informação aos meus amigos em Erhenrang, isto é, a de que ele era um agente duplo, servindo à facção do Mercado Livre. Isto, naturalmente, seria encami­nhado de volta a Mishnory e ao Sarf. E o pobre desgraçado caiu na história. Contou-me logo o que eu desejava saber e chegou a perguntar se eu aprovava. Eu não corria perigo imediato por parte de meus amigos Obsle, Yegey e os outros. Eles tinham comprado sua segurança sacrificando o Envia­do, e confiavam em mim para não causar embaraço tanto a eles quanto a mim próprio.