Até eu procurar Shusgis, ninguém, exceto Gaum, tinha me considerado importante, mas agora eles estariam firmes no meu encalço. Tenho que liquidar logo meus assuntos e desaparecer.
Não tendo jeito de entrar em contato com o pessoal de Karhide, pois as cartas seriam lidas e as transmissões de rádio e telefonemas interceptados, dirigi-me então pela primeira vez à embaixada real.
Sardon rem ir Chenewich, que eu conhecera bem na corte, estava fazendo parte do pessoal de lá. Concordou imediatamente em enviar uma mensagem a Argaven, notificando o que acontecera ao Enviado e onde ele se encontrava prisioneiro. Podia confiar em Chenewich, que era inteligente e honesto, e em que esta mensagem não seria interceptada, apesar de não poder prever absolutamente o que faria Argaven, de que forma agiria ao saber destas notícias.
Eu desejava que Argaven estivesse a par da informação no caso de a nave espacial ter que baixar, subitamente, ao solo; até aquele momento eu tivera esperanças de que ele tivesse se comunicado com ela antes de o Sarf o haver detido.
Eu também estava em perigo, e se tivesse sido visto entrando na embaixada, o perigo seria maior e imediato.
Saí direto de seus portões para o cais das caravanas, no lado sul, e antes do meio-dia,odstreth susmy, deixei Mishnory, do mesmo modo por que nela penetrara: como carregador de caminhão. Tinha em meu poder os meus antigos vistos de entrada, agora um pouco alterados para o novo tipo de trabalho. A falsificação de papéis é arriscada em Orgoreyn, onde eles são inspecionados cinqüenta vezes diariamente, mas não é raro as pessoas tentarem correr esse risco, e meus antigos camaradas da ilha do Peixe me haviam ensinado alguns truques sobre o assunto. Usar um nome falso me humilha, mas só isto poderia me salvar ou possibilitar a minha travessia do país até o litoral do mar Ocidental. Meus pensamentos estavam aí, no ocidente, enquanto a caravana atravessava a ponte de Kunderer e saía de Mishnory. O outono caminhava para o inverno agora, e eu teria que chegar ao meu lugar de destino antes que as estradas se fechassem ao tráfego pesado e enquanto eu pudesse ter alguma possibilidade de ação. Eu já vira uma fazenda ou campo voluntário em Komsvashom, quando estivera na administração de Sinoth, e já conversara com ex-convictos dessas fazendas. O que vira e ouvira voltava, agora, intensamente à minha memória. O Enviado, tão vulnerável ao frio, usando casaco mesmo à temperatura de trinta graus negativos, não sobreviveria ao inverno em Pulefen. Este pensamento me fazia andar mais depressa, mas a caravana ia em ritmo lento, serpenteando e parando de cidade em cidade, ora para o norte ora para o sul, carregando e descarregando. Isto me tomou quase um mês até chegar a Ethwen, no estuário do rio Esagel. Lá tive sorte.
Conversando com os homens na Hospedaria dos Viajantes, ouvi falar de um comércio de peles, em atividade na parte alta do rio, e de como os caçadores de pele licenciados subiam e desciam o rio em trenós ou barcos de neve, através da floresta de Tarrenpeth quase até os gelos árticos. Sobre suas conversas de armadilhas de caça, arquitetei um plano.
Há pesthry de pele branca na Terra de Kerm, assim como nos platôs gelados de Gobrin; elas gostam dos lugares bafejados pelos ventos das geleiras. Eu as caçara, quando jovem, nas florestas dethore em Kerm; por que não ir caçá-las agora nas florestas de thore em Pulefen?
No oeste distante e ao norte de Orgoreyn, nas grandes extensões selváticas das terras de Sembensyen, os homens se locomovem, para lá e para cá, à vontade, pois não há bastante inspetores para vigiar-lhes os passos. Algo da antiga liberdade sobrevive aí, durante a Nova Era. Ethwen é um porto acinzentado, construído sobre as rochas pardas da baía de Esagel; um vento chuvoso cheirando a maresia sopra nas ruas e o povo é constituído de marujos taciturnos, de fala curta e seca. Volto meus olhos para Ethwen com gratidão, pois ali a sorte me favoreceu.
Comprei esquis, raquetas de neve, armadilhas, provisões; adquiri minha licença de caça e autorização e identificação do escritório comensal e parti a pé, subindo o Esagel, com um grupo de caçadores conduzidos por um velho chamado Mavriva. O rio ainda não estava gelado e os carros podiam usar a estrada — pois chovia mais do que nevava nesta vertente costeira, mesmo agora, no último mês do ano.
A maior parte dos caçadores aguardava até chegar o pleno inverno e no mês de Thern subiam o Esagel nos barcos para neve. Mavriva pretendia chegar ao extremo norte muito cedo e preparar as armadilhas para as pesthry logo que elas viessem para baixo, para as florestas, na sua primeira corrente migratória. Mavriva conhecia bem toda essa região, as montanhas de Fogo melhor do que ninguém, e nesses dias que passei na sua companhia, rio acima, aprendi muita coisa com ele que iria aproveitar depois.
Na cidade de Turuf desliguei-me do grupo, alegando sentir-me doente. Eles continuaram para o norte, mas eu desviei-me em direção nordeste, sozinho, a caminho dos altiplanos montanhosos de Sembensyen. Passei alguns dias estudando a terra e então, tendo escondido quase tudo que levara comigo num vale oculto, a umas trinta e três milhas de Turuf, voltei a esta cidade pelo sul e me alojei na Hospedaria dos Viajantes. Como que me abastecendo para uma caçada, comprei esquis, raquetas de neve e provisões, bolsão de pele, agasalhos de inverno, tudo de novo, em duplicata; um fogareiro Chabe, uma tenda depolyskin e um trenó muito leve, também, para levar tudo isso. Então, nada a fazer senão aguardar que a chuva se transformasse em neve e a lama em gelo; não esperei muito, pois levara quase um mês indo de Mishnory a Turuf. No mês de Thern (primeiro mês de inverno), no 4.° dia (Arhad), o frio se transformou em gelo e a neve que eu tanto aguardava começou a cair. Ultrapassei a cerca elétrica de Pulefen no começo da tarde, e todos os rastros deixados para trás foram recobertos pela neve que caía. Deixei o trenó numa vala formada por um ribeirão, bem dentro da floresta, a oeste da fazenda, e carregando apenas a mochila às costas, fiz o percurso a pé, abertamente, até os portões da fazenda. Aí mostrei meus papéis, que falsificara de novo enquanto esperava em Turuf. Eles eram azuis agora, identificando-me como Thener Benth, um preso sob livramento condicional, e anexo a eles estava uma ordem de me apresentar a Eps Thern, na Terceira Fazenda Voluntária da Comensalidade de Pulefen, para exercer as funções de guarda por dois anos. Um inspetor de olho vivo suspeitaria desses papéis amarrotados, mas ali havia pouca gente esperta. Nada mais fácil que penetrar numa prisão. Quanto a sair dela, era também fácil. O chefe dos guardas de plantão repreendeu-me por ter chegado um dia atrasado segundo as ordens escritas recebidas e enviou-me para os alojamentos. O jantar tinha acabado de ser servido, e felizmente já era muito tarde para me entregarem as botas e uniformes de costume, de modo que as minhas próprias, muito boas, não foram confiscadas. Não me deram nenhuma arma de fogo, mas encontrei uma à mão enquanto fazia minha busca na cozinha, tentando convencer o cozinheiro a me dar algo para comer. Sua arma estava pendurada num prego atrás da porta. Roubei-a. Não tinha carga mortífera; talvez nenhuma delas tivesse. Não matam gente nestas fazendas; deixam a pessoa fugir, e a fome, o frio e o desespero fazem isto por eles. Havia trinta ou quarenta guardas de prisão e uns cento e cinqüenta a cento e sessenta prisioneiros, nenhum deles com muito boa aparência, a maioria caindo de sono, embora não passasse da 4.a hora. Consegui que um jovem guarda me levasse a dar uma volta e me mostrasse os prisioneiros dormindo. Pude então vê-los naquela ofuscante luz que fazia claro como dia aquele enorme dormitório e desisti das minhas esperanças de agir naquela mesma noite, antes que atraísse suspeita sobre mim. Estavam todos metidos nos seus sacos de dormir como crianças no ventre materno, invisíveis, indistinguíveis. Todos, menos um, muito comprido para se esconder, rosto escuro e encaveirado, olhos fechados e enterrados nas órbitas, o cabelo num emaranhado fibroso. A sorte que me bafejara em Ethwen agora também tinha girado sua roda sob minhas mãos. Sempre tive um dom, o de saber quando chega o momento oportuno de agir, agir com presteza protegido pela boa sorte. Pensei que houvesse perdido esta capacidade no ano passado, em Erhenrang, e nunca mais fosse recuperá-la. Foi uma felicidade sentir que reavia este dom, saber que podia manejar minha boa sorte e a sorte do comando, como um trenó lançado no exato momento, declive abaixo, em direção a um alvo certo. Continuei a desempenhar o meu papel de guarda, resmungando e espionando tudo como um cara inquieto, curioso. Acabaram por me colocar no último turno de vigilância, e à meia-noite só eu e um outro guarda permanecíamos acordados. Continuei meu incansável escrutínio dos presos, caminhando a esmo, ao longo das fileiras dos beliches. Organizei bem na minha mente os planos e tratei de fortalecer minha vontade e meu corpo, entrando em dothe, pois minhas forças físicas sozinhas não seriam suficientes sem a ajuda daquela força espiritual que provém das trevas. Um pouco antes do amanhecer entrei no dormitório e com uma pancada de um centésimo de segundo na cabeça de Genly Ai, com o revólver roubado, atordoei-o rapidamente. Depois retirei-o do beliche, envolto nas cobertas, e carreguei-o nos ombros até a sala dos guardas.