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“Que está fazendo?!”, perguntou um dos guardas, so­nolento.

“Está morto.”

“Outro morto? Por Meshe, e ainda mal começou o inverno.” Voltou-se para olhar a cara do Enviado, pendu­rado para baixo, nas minhas costas.

“Ah, esse aí é o Pervertido. Pelo olho de Meshe, eu não acreditava nas coisas que contavam dos karhideanos até que vi esse cara aí; que aleijão mais feio que é! Ele passou toda essa semana gemendo e suspirando, deitado, mas não pensei que fosse morrer assim tão depressa. Bem, vá lá fora e deixe ele lá até clarear o dia; não fique aí parado como um carregador com um saco de batatas às costas…”

Parei no escritório do inspetor, ao fim do corredor, pois sendo guarda nada me impedia de entrar lá. Procurei e achei o painel de chaves dos alarmas e de desligamento de forças. Nada estava etiquetado, mas os guardas tinham escri­to iniciais ao lado delas para avivar a memória quando hou­vesse uma emergência. Supondo que “C. C.” fosse para as cercas, desliguei o circuito para cortar a corrente elétrica que corria ao longo delas, na defesa mais remota e externa da fazenda. Continuei arrastando Genly Ai, agora pelos ombros. Quando cheguei junto do guarda de plantão na guarita, fiz uma cena como se estivesse fazendo muito esforço para erguer o corpo, pois não desejava mostrar o quanto isto estava sendo realmente fácil para mim, em pleno poder da força de dothe.

Aproximando-me dele, falei:

“Um prisioneiro morto. Eles me mandaram retirá-lo do dormitório. Onde posso largá-lo?”

“Não sei. Leve-o para fora; debaixo de um telhado, assim ele não fica sob a neve o tempo todo e volta, flutuando na correnteza, fedendo, no degelo. Está nevando peditia.”

Ele queria dizer que era neve sove, uma neve espessa, úmida, que estava caindo, a melhor notícia para mim.

“Está bem, está bem…”, retruquei, e tratei de levar minha carga para fora do alojamento e de suas vistas.

Coloquei o Enviado nos meus ombros de novo e cami­nhei rápido na direção nordeste umas centenas de jardas, chegando até a cerca, agora desligada; atirei a carga do outro lado e pulei, também. Então, novamente com Ai nos ombros, tratei de escapar o mais depressa possível em direção ao rio. Não estava muito distante da cerca da prisão quando ouvi um apito trilar agudamente e os holofotes se acenderem. Esforcei-me para me ocultar e às pegadas que deixava na neve com a minha passagem. Consegui chegar ao rio sem que eles pudessem alcançar meus rastros.

Fui para o norte, em terreno limpo sob árvores ou através das águas, quando não encontrava caminho limpo; o rio era um pequeno tributário de águas turbulentas do rio Esagel, e estava ainda sem capa de gelo. O amanhecer torna­va tudo claro e tratei de apressar-me.

Por estar em pleno dothe, o Enviado, apesar de com­prido e desajeitado, não era pesado demais para mim. Acom­panhando a correnteza a descer pela floresta, cheguei à ravi­na onde deixara meu trenó; prendi Ai ao trenó com alças de couro, acolchoando-o com as coisas que trouxera, até que ele ficou bem escondido debaixo de tudo e, principalmente, bem abrigado contra o tempo. Então troquei minhas roupas e comi alguma coisa da mochila, pois a grande fome que se sente nos longos períodos de dothe já estava tomando conta de mim. Parti em seguida para o norte pela estrada florestal mais importante. Dentro em pouco, um par de esquiadores me alcançou. Eu estava vestido e equipado como caçador e disse-lhes que estava tentando me pôr em contato com a turma de Mavriva que tinha ido para o norte nos últimos dias de Grende. Eles conheciam Mavriva e aceitaram minha história depois de darem uma olhada na minha licença de caçador. Não esperavam encontrar os dois homens que esca­param da prisão indo para o norte, pois nada existe ao norte de Pulefen, a não ser floresta e gelo. Eles talvez nem esti­vessem interessados em encontrar os fugitivos. Por que esta­riam? Continuaram no seu caminho e uma hora depois cru­zaram comigo novamente, já voltando para a fazenda. Um deles era o meu companheiro de ronda noturna. Mas nunca havia olhado bem para o meu rosto, embora o tivesse na sua frente metade da noite. Quando desapareceram de vista, tomei outro rumo e durante todo aquele dia fiz um longo semicírculo através da floresta e das vertentes ociden­tais da fazenda, voltando finalmente destas vastidões desér­ticas para o pequeno vale escondido acima de Turuf, onde havia guardado meu equipamento extra. Era difícil manobrar o trenó naquelas terras muito enrugadas, com um peso muito maior que o meu próprio para puxar, mas a neve era abun­dante e já estava se tornando bem endurecida, e eu estava emdothe. Tinha que manter este estado, pois quando se relaxa, não se fica em condições para mais nada. Nunca tinha mantido o estado de dothe por mais de uma hora, mas sabia que alguns anciãos podem conservá-lo em plena força por um dia e uma noite, às vezes mais, e minha necessidade agora era uma boa aplicação do meu treinamento. Em dothe a pessoa fica num certo estado de despreocupação, e a ansie­dade que eu sentia era em relação ao Enviado, que já deveria ter acordado há muito daquela pancada sônica que lhe havia dado na cabeça. Ele não se mexera ainda e eu não tinha tempo de me ocupar dele no momento. Seria seu corpo tão diferente do nosso que o que para nós não passaria de mera paralisia para ele significava a morte?

Quando a sorte nos bafeja temos que ter cuidado com nossos pensamentos e nossas palavras; eu já o chamara duas vezes de morto e o carregara como os mortos são carregados. Cheguei a pensar que fora um homem morto que eu arras­tara pelas colinas acima e que minha sorte e sua vida haviam sido malbaratadas, afinal de contas. Pensando nisso, pra­guejava e suava e a força do dothe parecia se esvair de mim como a água através de uma jarra rachada. Mas continuei e as forças não me abandonaram até que atingi o esconde­rijo, aos pés das colinas. Então armei a tenda e fiz o que estava ao meu alcance por Genly Ai. Abri uma caixa de alimentos superconcentrados em cubos, a maior parte dos quais devorei avidamente, mas separei alguns para fazer um caldo que consegui que ele ingerisse, pois já parecia morrer de inanição.