Выбрать главу

— Espero que esteja levando em conta minha resistência pouco adequada. Não sou tão resistente ao frio quan­to você. Não sou, também, perito em esquiar, nem me sinto em boa forma física, embora tenha melhorado muito de dois dias para cá…

Concordou novamente.

— Creio que podemos conseguir — disse com aquela simplicidade total que eu tomara, durante tanto tempo, por ironia.

— De acordo!

Olhou-me de viés e bebeu sua xícara de orsh. É uma espécie de chá, a partir do grão de perm torrado e fermen­tado; é uma bebida escura, agridoce, com forte conteúdo de vitaminas A e C, açúcar e um estimulante muito agradável da família das lobélinas. Onde não há cerveja em Inverno há orsh; e onde não há orsh nem cerveja, não há ninguém.

— Vai ser duro — disse finalmente, depositando a xícara vazia. — Muito duro. Sem sorte, não vamos con­seguir.

— É melhor morrer nas geleiras do que naquele esgoto de onde você me tirou!

Cortou um pedaço de pão de maçã seco, ofereceu-me uma fatia e sentou-se mastigando, pensativamente:

— Vamos precisar de comida.

— E o que nos acontecerá se conseguirmos chegar a Karhide? O que lhe acontecerá, quero dizer; você ainda é um proscrito?

Voltou-me seu olhar escuro como o de uma lontra:

— Sou. Suponho que tenha que ficar do lado de cá.

— E quando descobrirem que você ajudou o prisio­neiro deles a fugir?

— Não precisam descobrir — ele sorriu desolado. — Primeiro teremos que atravessar a geleira.

— Escute, Estraven — insisti —, você me perdoa pelo que lhe disse ontem…

— Nusuth… — Levantou-se, ainda mastigando, co­locou o capuz, o casaco e as botas, deslizando para fora como um animal marinho desliza para a água. Já do lado de fora da porta de fechamento automático, ele tornou a meter a cabeça no interior da barraca e disse:

— Posso demorar, talvez seja necessário até passar a noite toda fora. Pode se arrumar sozinho?

— Claro que sim.

— Está bem, está bem… — e sumiu.

Nunca conheci ninguém que reagisse tão integral e rapidamente a uma mudança de situação como Estraven. Eu estava em recuperação e desejava ir também; ele estava fora do período de thangen; quando tudo se normalizou para ele, já estava em ação. Era esté o segredo, sem dúvida, da extraordinária carreira política que ele jogou fora por minha causa; era também a explicação de sua fé em mim e a devo­ção à minha missão. Quando eu cheguei, ele estava prepa­rado. Ninguém, porém, no planeta Inverno, o estava. E, no entanto ele se considerava um homem lento, de reações fracas em situações críticas. Uma vez ele me contou que, por pensar tão vagarosamente, tinha que guiar seus atos por uma intuição geral sobre o rumo que sua sorte estava to­mando, e que esta intuição raramente lhe falhava. Dizia isso seriamente; devia ser verdade. Os áugures dos monastérios não são os únicos no planeta Inverno que podem fazer previsões. Eles têm o dom da premonição, mas não desen­volveram sua segurança nela. Neste assunto, os yomeshtas também têm seu ponto a favor — o dom não é estritamente ou simplesmente de previsão, mas é antes o poder de ver (mesmo por uma fração de segundo) tudo de uma vez só, ver a totalidade.

Mantive o fogareiro de aquecimento no seu máximo enquanto Estraven estava fora e assim me senti bem aque­cido, pela primeira vez, em muito tempo.

Creio que devia ser o mês de Thern, agora, o primeiro mês de inverno de um novo ano 1, mas tinha perdido a noção do tempo em Pulefen.

O fogareiro era um desses aparelhos excelentes e eco­nômicos, aperfeiçoados pelos gethenianos, no seu esforço mi­lenar de vencer o frio. Apenas o uso de uma pilha de fusão como fonte de energia poderia melhorá-lo. Sua bateria de energia biônica durava catorze meses, com uso contínuo; sua produção de calor era intensa; ao mesmo tempo era fogão, aquecedor e fonte de luz, tudo numa coisa só, e pesava quatro libras. Não teríamos viajado cinqüenta mi­lhas sem ele. Devia ter custado um bocado de dinheiro a Estraven, aquele dinheiro que eu lhe tinha entregue tão arro­gantemente em Mishnory. Assim como a barraca, confeccio­nada com um plástico especial, resistente ao mau tempo e planejada para evitar, pelo menos, a condensação de vapor d’água no seu interior — que é a praga de todas as tendas nos lugares frios —, os sacos de dormir de peliça de pesthry; roupas, esquis, trenós, abastecimento de alimentos, tudo da melhor qualidade, leve, durável, caro. Se ele tinha ido em busca de mais alimentos, como iria comprá-los?

Estraven não voltou senão ao anoitecer do dia seguin­te. Eu saíra diversas vezes com raquetas de neve, caminhando pelas encostas do vale nevado que escondia nossa tenda, procurando reabilitar minha energia e prática. Eu era hábil nos esquis, mas não tanto no uso destas raquetas. Não ousa­va me distanciar muito de nossa tenda, pois poderia perder os rastros de volta; era uma terra desértica, montanhosa, cheia de ravinas e cavidades e que se levantava abruptamente para as montanhas de leste, sempre coroadas de nuvens. Não tive tempo de pensar no que faria neste lugar abandonado se Estraven não voltasse. Ele veio precipitando-se vertiginosamente na encosta e parou ao meu lado, sujo, cansado e carregado. Tinha nas costas um enorme saco fuliginoso recheado de pacotes: Papai Noel que desce pelas chaminés da velha Terra. Os embrulhos eram de germe dekadik, pão de maçã seco, chá e fatias de um açúcar duro, vermelho e com gosto de terra que os gethenianos refinam em uma de suas usinas.

— Como conseguiu isto tudo?!

— Roubei — disse 0 antigo primeiro-ministro de Karhide estendendo as mãos para o fogo que ele ainda não abai­xara. Estava com frio. — Em Turuf, o lugar mais perto daqui.

Foi tudo que ouvi e soube. Ele não estava orgulhoso do seu feito, nem mesmo podia rir-se dele. Roubo é um crime vil em Inverno; na verdade, o único homem mais desprezado que o ladrão é o suicida.

— Vamos gastar essas coisas, em primeiro lugar — disse, quando pus uma panela de neve no fogareiro para derreter. — É muito peso.

A maior parte do alimento que ele armazenara era ração hiperconcentrada, alimento desidratado e comprimido em forma de cubos, de uma mistura de alta caloria e grande teor alimentício. O nome orgota para ela égichy-michy, e era assim que a chamávamos, apesar de falarmos karhideano quando ficávamos a sós.

Tínhamos o bastante para passarmos sessenta dias com um mínimo de ração: uma libra por dia para cada um.

Depois de haver se lavado e comido, Estraven ficou sentado muito tempo perto do fogo, calculando precisamen­te o que tínhamos, quanto e quando deveríamos gastar. Não tínhamos balança e o cálculo era feito na base de uma caixa de gichy-michy como unidade. Ele sabia, como muitos ge­thenianos, o valor calórico e nutritivo de cada alimento, sabia de suas próprias necessidades sob diversas condições e como calcular a minha bastante bem. Saber disso é matéria de alto valor para a própria sobrevivência em Inverno.

Quando afinal conseguiu planejar a distribuição de nossas rações, mergulhou no seu saco e pegou no sono. Durante a noite, ouvi-o murmurar números, pesos, dias, distâncias…

Tínhamos, mais ou menos, oitocentas milhas de cami­nho pela frente. As primeiras cem seriam para o norte ou nordeste, através das florestas e as últimas vertentes seten­trionais das montanhas Sembensyens, até a grande geleira, o lençol de gelo que recobre o Grande Continente, acima do quadragésimo quinto paralelo e que, em certos lugares, desce até o trigésimo quinto. Um desses braços para o sul fica na região das montanhas de Fogo, os últimos picos das Sembensyens; esta região era a nossa primeira meta.