Nosso estoque de alimentos tem caído assustadoramente, mas é porque temos comido do alimento mais sólido. Tínhamos cerca de cem libras de comida bruta, metade dela roubada em Turuf; sessenta libras se foram após quinze dias de viagem. Já comecei o gichy-michy, uma libra por dia, economizando dois sacos de germe de kadik, açúcar e um cesto de bolos de peixes secos para variarmos depois. Estou contente de haver consumido esta carga mais pesada, pois o trenó desliza mais fácil.
Sordny thanern (2° dia). Estamos a vinte graus; chuva gelada, vento descendo pelo rio de gelo como uma correnteza num túnel. Acampamos a um quarto de milha da orla, ao longo de uma comprida estria de fim. A descida do Dremegole foi áspera e difícil, na rocha nua ou em terreno rochoso; as bordas da geleira são cheias de fissuras e tão coalhadas de cascalhos e rochas descidas junto com o gelo, que achamos melhor colocar o trenó novamente sobre rodas.
Antes que tivéssemos percorrido cem jardas, uma roda rachou e o eixo entortou. Usaremos lâminas, de agora em diante. Fizemos apenas quatro milhas hoje; ainda na direção errada. A geleira parece fazer uma longa curva para oeste até o platô de Gobrin. Aqui, entre vulcões, a distância é de cerca de quatro milhas de largura e não deveria ser difícil caminhar para o centro, apesar de se apresentar com mais fendas e com uma superfície mais irregular do que eu esperava.
O Drumner está em erupção. A saraivada úmida que cai nos chega à boca com gosto de fumaça e de enxofre. Uma escuridão pairou todo o dia a oeste, mesmo sob as nuvens de chuva. De vez em quando, as nuvens, a chuva, o gelo, o ar, tudo se transformava, tingindo-se de um vermelho sombrio, que ia desmaiando lentamente até o acinzentado. A geleira treme um pouco sob nossos pés.
Eskichwe rem ir Her apresentou uma hipótese sobre a atividade vulcânica na zona nordeste de Orgoreyn e do Arquipélago: sua atividade seria gradativamente aumentada nestes últimos milênios e pressagiaria o fim da era glacial, ou, pelo menos, sua recessão, e o começo de um período interglacial. O gás carbônico liberado pelos vulcões na atmosfera serviria como isolador, conservando a energia calórica das ondas longas refletidas pela superfície da terra, embora permitindo que o calor solar direto, provindo de fora, penetrasse sem qualquer perda calórica. A temperatura média mundial, ele diz, terá, no final, uma elevação de trinta graus, até atingir setenta e dois. Sinto-me feliz em não estar vivo nesta ocasião. Ai diz que teorias semelhantes têm sido apresentadas pelos sábios da Terra para explicar a recessão da sua última Idade do Gelo. Tais teorias permanecem, na maior parte, sem possibilidades de prova e irrefutáveis; ninguém sabe, com certeza, por que o gelo vai ou vem. A neve da ignorância continua virgem.
Uma grande mesa de fogo arde, agora, na escuridão, sobre o vulcão Drumner.
Eps thanern (3.° dia). O medidor acusa dezesseis milhas de percurso hoje, mas não temos mais do que oito milhas em linha reta, do acampamento de ontem à noite. Estamos ainda no passo de gelo, entre os dois vulcões. O Drumner está em erupção. Vermes de fogo rastejam, descendo suas vertentes, e podem ser vistos quando o vento varre os sedimentos em ebulição, as nuvens de cinzas e o vapor branco. Sem pausa, de modo contínuo, um chiado ressoa, subitamente, no ar, tão longo e imenso que penetra em todos os poros do nosso ser. A geleira treme, estala, oscila e parte-se sob nossos pés, demoradamente. Todas as passagens que as nevascas poderiam ter lançado através, das fendas profundas desapareceram, desmanteladas por esses tremores de terra sob o gelo. Movemo-nos para a frente e para trás procurando o término de uma dessas aberturas a fim de impedir que o trenó seja engolido para dentro, em busca da próxima passagem, tendo sempre em mira a direção norte, mas forçados a tomar laterais, ora para a direita, ora para a esquerda.
Mais acima, o Dremegole, fazendo coro com a atividade do Drumner, grunhe e expele uma fumaça fétida.
Esta manhã, quando olhei para Ai, vi que seu rosto havia sido ulcerado pelo frio: nariz, orelhas, queixo, tudo estava de um cinza de morto. Fiz-lhe massagem para lhe restituir a circulação e a vida. Temos que tomar mais cuidado. O vento que sopra aqui é mortífero, esta é a verdade; e temos que recebê-lo pela frente quando fazemos nosso arrastão. Sentir-me-ei feliz quando conseguir sair desse braço de gelo cheio de rugas e fendas, entre esses dois monstros rosnando. Montanhas são para serem vistas, e não ouvidas.
Arhad thanern. Alguma neve sove, entre quinze e vinte graus. Caminhamos vinte milhas hoje, cinco destas denotando avanço; a borda do Gobrin está visivelmente próxima, ao norte, na nossa frente. Podemos agora ver que o rio de gelo tem a largura de milhas, o “braço” entre os dois vulcões não passa de um dedo e agora chegamos ao dorso da mão.
Olhando para trás, para o caminho já percorrido, vê-se uma corrente de geleiras divididas, estraçalhadas, esmigalhadas pelos picos negros em ebulição. Na frente, ela se alarga, subindo lentamente e encurvando-se suave, tornando mínimas as bordas escuras de terra, indo ao encontro do paredão de gelo mais acima, sob camadas de nuvens, fumaça e neve.
Cinzas vulcânicas caem, agora, misturadas com a neve e o gelo, o chão está coalhado de rebarbas; é uma superfície muito boa para se caminhar mas muito áspera para arrastar coisas, e as lâminas do trenó necessitam de renovação constante das camadas de revestimento protetor.
Algumas vezes, projéteis vulcânicos mais pesados se espatifam no gelo, perto de nós. Eles emitem um sibilo alto quando atingem o solo e o choque do atrito cava um buraco queimado no solo gelado. Cinzas, ao caírem no chão, tamborilam como chuva.
Arrastamo-nos de modo infinitesimal, em direção ao norte, através desse caos de um mundo em formação.
Louve-se esta criação inacabada!
Netherhad thanern. Desde cedo não neva; céu coberto e ventoso. Quinze graus de temperatura. A geleira múltipla em que nos encontramos vai desaguar no vale a leste e estamos na sua borda, do lado oeste. Os dois vulcões agora já estão um pouco atrás de nós, apesar de uma vertente íngreme do Dremegole ainda se erguer a leste, quase à altura da nossa vista. Galgamos um ponto onde teremos de escolher entre seguir a geleira na sua longa curvatura para oeste e assim, gradualmente, retornar a subida até o platô de gelo; ou então escalar os penhascos de gelo que estão a uma milha ao norte dessa nossa parada noturna, e assim economizar vinte a trinta milhas de arrastão, à custa deste risco.
Ai é a favor de corrermos o risco. Há uma certa fragilidade nele. Parece um ser exposto, desprotegido, vulnerável, mesmo quanto aos seus órgãos sexuais, que ele tem que levar sempre no exterior de si; mas ele é forte, incrivelmente forte. Não estou muito certo de que ele possa arrastar o trenó por mais tempo que eu, mas quando ele o faz tem duas vezes mais força e ligeireza. Ele pode erguer o trenó pela frente ou por trás para facilitar a transposição de um obstáculo. Eu não poderia fazer isto, a não ser que estivesse em dothe. Para tornar coerente essa combinação de força e fragilidade, ele pode chegar facilmente ao desespero e possui uma resposta rápida ao desafio; uma coragem paciente e ardente. A lenta e dura caminhada desses dias o esgotou de corpo e alma; de tal forma que se ele fosse da minha raça eu o julgaria um fraco. Mas ele não é nada disso — tem bravura como nunca vi igual, está sempre alerta. Ele está pronto, decidido a pôr em jogo a vida em qualquer prova de perigo. “Fogo e medo; bons escravos, maus senhores.” Ele faz do medo seu servidor. O medo que o induziria a dar a volta mais longa do percurso. Mas a coragem e a razão estão com ele. Qual a certeza de procurar o caminho mais seguro, numa jornada destas? Há decisões insensatas que eu não tomaria, mas não existe nenhuma segura.