Não estamos muito mais perto de Karhide do que quando partimos. Mas temos uma chance melhor de lá chegar, penso eu.
Desde que conseguimos nos descartar daquela escuridão vulcânica e nosso espírito não está engolfado em trabalho e preocupação permanentes, voltamos a conversar na tenda, à noite, após o jantar.
Como estou em kemmer, seria mais fácil ignorar a presença de Ai se não estivéssemos numa tenda a dois. O que perturba é, naturalmente, que ele também está em kemmer, naquela sua peculiar maneira de ser, isto é, sempre em kemmer. Deve ser uma estranha espécie de desejo a fogo lento, se espalhando por todos os dias do ano, sem escolha de sexo; mas assim é e aqui estou eu. Hoje à noite, minha consciência aguda de sua presença física era penosa de ignorar e eu estava demasiadamente cansado para canalizá-la em sublimação ou qualquer outra atitude disciplinadora. Ele, afinal, me perguntou: “Eu o ofendi?” Expliquei-lhe meu silêncio, com um certo embaraço. Tinha receio de que risse de mim. Afinal de contas, ele, para mim, é uma aberração sexual tanto quanto eu o sou para ele: aqui no gelo cada um de nós é um caso singular, isolado, pois eu estou desligado da sociedade dos meus iguais, como ele está da dele. Não há outros gethenianos para explicar e comprovar minha existência. Somos iguais, em suma, iguais na solidão, na alienação. Ele não riu, naturalmente. Ao contrário, falou com uma gentileza de que eu não o imaginava capaz. Falou também de isolamento, de solidão.
“Sua raça é espantosamente única no universo. Não há, entre os mamíferos, outra espécie semelhante. Não existem raças ambissexuais. Nenhum animal inteligente o é, mesmo para ser criado como de estimação. Deve dar uma característica toda especial esta singularidade. Não falo do pensamento científico apenas, apesar de vocês serem extraordinários formuladores de hipóteses — é notável como vocês chegam ao conceito de evolução tendo que se defrontar com essa falha intransponível entre vocês e os animais inferiores. Mas, filosoficamente, emocionalmente, ser tão solitário num mundo tão hostil tem que alterar todas as perspectivas.”
“O culto yomeshta diz que essa singularidade do homem é a sua divindade.”
“Senhores da Terra, sim. Outros cultos, em outros mundos, chegaram à mesma conclusão. São cultos de culturas dinâmicas, agressivas, destruidoras da ecologia. Orgoreyn está tomando esse padrão; pelo menos eles parecem inclinados a movimentar as coisas ao seu redor. Que dizem os handdaratas?”
“Bem, nohanddara… você sabe, não há teorias, não há dogmas. Talvez eles estejam menos cientes dessa distância entre homem e animal, preocupando-se mais com as semelhanças, os laços que unem todas as coisas vivas, como parte de um todo. Um poema de Tormer ficou hoje o dia todo na minha lembrança. São estas suas palavras:
A luz é a mão esquerda da escuridão e a escuridão é a mão direita da luz.
Vida e morte são como amantes na unidade do êxtase — dois em um — como mãos postas, uma contra a outra, são o princípio e o fim.
Minha voz tremeu quando recitei o poema, pois me lembrei, enquanto o pronunciava, que meu irmão, na carta que me escrevera antes de morrer, dizia estas mesmas palavras.
Ai perdeu-se em abstrações e após alguns instantes disse:
“Você está isolado e não-dividido. Talvez você esteja tão obcecado pela totalidade como nós estamos pela dualidade”.
“Somos dualistas também. Dualidade é essencial, não é? Desde que exista o eu e o outro.”
“Tu e eu”, disse ele. “Sim, no final, isto é mais profundo do que sexo…”
“Diga-me, Ai, como o outro sexo de sua raça difere de vocês?”, perguntei. Ele pareceu espantado, e, na realidade, minha pergunta também me espantou. Okemmer traz à tona essa espontaneidade nas pessoas. Nós estávamos muito autoconscientes.
“Nunca pensei nisso. Você nunca viu uma mulher.”
Ele usava a palavra que eu já conhecia, na sua língua.
“Vi retratos delas; as mulheres parecem gethenianos grávidos, mas com peitos maiores. Diferem muito do seu sexo mentalmente? São como uma espécie diferente?”
“Não… sim… Não, naturalmente que não… Não, verdadeiramente. Mas a diferença é muito importante. Suponho que a coisa mais importante, o fator único de maior peso na vida do indivíduo, é se ele nasceu macho ou fêmea. Na maior parte das sociedades, isto determina suas expectativas, atividades, pontos de vista, ética, maneiras, quase tudo. Vocabulário, vestuário, até mesmo alimentação. As mulheres, em geral, comem menos. É difícil separar as diferenças congênitas das adquiridas. Mesmo quando as mulheres participam igualmente da sociedade com os homens, elas, afinal, é que geram os filhos, cuidam deles e praticamente os criam.”
“Igualdade não é a regra geral, então? Elas são inferiores mentalmente?”
“Não sei. Elas não se inclinam muito para a matemática, composição musical, invenções ou pensamento abstrato. Mas isto não quer dizer que sejam tolas. Fisicamente são menos musculosas que o homem, mas vivem mais do que eles. Psicologicamente…”
Após um momento de silêncio, fitando o fogo, Ai sacudiu a cabeça:
“Harth”, disse, “não sei lhe dizer como são as mulheres. Nunca pensei nelas de um modo abstrato, você sabe — e, céus! — quase me esqueci de que estou aqui há dois anos… Você não pode imaginar. Num certo sentido, as mulheres são mais estranhas para mim que você, Harth. Com você, de qualquer forma, eu partilho de um mesmo sexo…” Ele olhou distante e riu, mas pesaroso e constrangido. Meus próprios sentimentos eram complexos e deixamos morrer o assunto.
Yrny thanern. Dezoito milhas hoje, leste, nordeste pela bússola, nos esquis. Saímos da encosta pressurizada e cheia de fissura na nossa primeira hora de tração. Ambos puxamos, eu na frente, primeiro; mas não há mais necessidade de testar o solo com cautela, pois está firme, espesso sobre gelo sólido e sobre ele uma camada de revestimento, algumas polegadas de neve nova da última nevasca, com uma boa superfície de deslizamento. Nem nós nem o trenó precisamos abrir caminho; o trenó deslizava tão leve que era difícil de imaginar que ainda carregávamos cem libras para cada um. Durante a tarde, nos revezamos no carreto, pois é muito fácil fazê-lo nesta superfície esplêndida. É uma pena que todo aquele trabalho exaustivo sobre rochas tivesse sido feito em subidas íngremes, quando estávamos tão carregados.
Agora vamos com ligeireza. Carga muito leve, descubro-me a pensar em comida, um bocado. “Nós comemos”, diz Ai, de modo etéreo.
Todo o dia deslizamos leve e rápido sobre a planície gelada, bem nivelada e branca de todo, sob um céu cinza-azulado, sem falhas, exceto alguns picos negros atrás de nós, e uma mancha avermelhada, a respiração do Drumner mais distante. Nada mais: o sol velado, o gelo eterno.
VIII
O mito orgota da criação
As origens deste mito são pré-históricas. Ele tem sido registrado de diferentes formas. Esta versão bastante primitiva foi transcrita de um texto datado do períodopré-yomesh, encontrado nas cavernas santuárias de Isenpeth, nos desertos de Gobrin.
No começo nada existia a não ser o sol e o gelo. Durante longos anos, o sol a brilhar abriu uma grande fissura no gelo. Nos seus flancos apareceram grandes formas geladas, e não se via o fundo. Gotas d’água se derretiam dessas estruturas e caíam dentro do abismo.