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Uma destas formas falou: “Eu sangro”. Outra acres­centou: “Eu choro”. E a terceira exclamou: “Eu suo”. Estas formas geladas conseguiram galgar o abismo e foram para a planície gelada. Aquela que falara “eu sangro” foi até o sol e das suas entranhas arrancou matéria, que moldou e com a qual formou os vales e as montanhas do planeta. Aquela que falara “eu choro” soprou no gelo e, derretendo-o, fez os mares e os rios. A que falara “eu suo” juntou as águas e as terras e fez plantas, árvores, grãos, animais e os homens. As plantas cresceram no solo e no mar; os animais se multi­plicaram na terra e nadaram no mar, mas os homens não despertaram. Eles eram trinta e nove. Estavam adormecidos no gelo e não tinham vida.

As três figuras de neve se sentaram encurvadas, com os joelhos encolhidos para junto do corpo, e deixaram-se derreter pelo sol. Dissolveram-se em leite, que escorreu para a boca dos que dormiam e eles despertaram. Este leite só é sugado pelos filhos dos homens, e, sem ele, jamais acordam para a vida.

O primeiro a acordar foi Edondurath. Era tão alto que, quando se ergueu, sua cabeça rachou o céu e deste caiu a neve. Ele viu os outros homens mexendo-se e acordando; então teve medo e os matou, um a um, com um soco de seu punho.

Entretanto, um deles, o penúltimo, conseguiu escapar. Chamava-se Haharath. Escapando da morte, fugiu para lon­ge, sobre as planícies de gelo e as terras degeladas. Edondurath corria atrás dele e conseguiu, finalmente, alcançá-lo, abatendo-o. Haharath morreu. Edondurath, então, voltou ao local do seu nascimento, nos gelos de Gobrin, onde jaziam os outros mortos. Enquanto ele perseguia Haharath, outro havia escapado com vida. Edondurath construiu um abrigo com os corpos congelados de seus mortos e aí aguardou que o fugitivo retornasse.

Cada dia um dos cadáveres perguntava:

— Ele arde? Ele arde?

Ao que os outros respondiam com suas línguas geladas:

— Não… Não…

Passa-se o tempo e Edondurath entra em kemmer. Dor­mindo, movia-se e falava em voz alta. Quando acordou, os cadáveres estavam todos dizendo:

— Ele arde! Ele arde!

E o mais jovem dos mortos, ao ouvi-los dizer isto, en­trou na casa dos cadáveres e lá se acasalou com Edondurath. Desta união provieram as nações de homens, oriundas da carne de Edondurath, geradas no ventre de Edondurath. O nome do jovem morto, pai dos homens, nunca se soube. Cada criança que nascia tinha uma mancha de sombra que a seguia para onde fosse, à luz do dia. Edondurath indagou:

— Por que meus filhos são acompanhados pelas trevas?

Seu kemmering respondeu:

— Porque nasceram em casa de carne humana, e, assim, a morte está sempre nos seus calcanhares. Estão no meio do tempo. No começo havia sol e gelo, não havia sombra. No fim, quando nos extinguirmos, o sol vai se consumir e a sombra engolirá a luz e nada restará a não ser o gelo e as trevas.

XVIII

A revelação do amor

Algumas vezes, quando estou começando a dormir, num quarto escuro e silencioso, tenho, por momentos, uma gran­de e preciosa ilusão do passado. A parede da tenda se en­curva sobre meu rosto, não visível, mas audível, um plano inclinado de um sussurro suave: o da neve a cair. Nada pode ser visto. A luz emitida pelo fogareiro Chabe está desligada e existe apenas uma esfera de calor, um centro irradiador de tepidez; a leve umidade e a aderência apertada do saco de dormir; o som da neve, a respiração de Estraven levemente percebida no sono. Escuridão. Nada mais. Estamos os dois abrigados, repousando dentro, no centro de todas as coisas. Fora, como sempre, a grande escuridão, o frio, a solidão da morte.

Em tais momentos felizes eu sei, sem sombra de dú­vida, qual é o centro verdadeiro de minha própria vida, aquele tempo já passado e perdido, e, no entanto, permanen­te, o momento duradouro, o coração da tepidez.

Não estou tentando dizer que era feliz durante esta semana de tração de trenó através daquele vasto lençol ge­lado, no auge do inverno. Vivia faminto, supertenso, e mui­tas vezes ansioso, e, claro, tudo piorava quanto mais tempo se passava. Não era feliz, isto é certo. Felicidade está ligada à razão e apenas a razão a conquista. O que me era ofere­cido era o que não se pode conquistar e não se pode reter; não se chega nem mesmo a reconhecer quando acontece; que­ro dizer, puro contentamento. Eu era sempre o primeiro a acordar, geralmente antes do nascer do dia. Meu coeficiente metabólico é ligeiramente mais elevado do que o padrão getheniano, como o são minha altura e peso; Estraven considerara essas diferenças ao fazer o cálculo das rações alimen­tares, e, no seu modo escrupuloso, que parecia um tanto doméstico, ou então científico, eu, desde o começo, tivera por dia uma dose de alimento a mais do que ele. Meus protestos por esta proteção caíram por terra ante a justiça evidente dessa divisão desigual. Embora assim fosse, o que me cabia era pouco. Estava faminto, sempre faminto, cada dia mais. Acordei porquê tinha fome.

Estava ainda escuro; acendi a luz do fogareiro e colo­quei no fogo uma panela de gelo que tínhamos trazido para dentro, na véspera. Estraven, enquanto isso, continuava no seu combate feroz e silencioso com o sono, como se lutasse com um anjo. Vencedor, ele se sentou, olhou-me de modo vago, sacudiu a cabeça e acordou. Quando acabamos de nos vestir, calçar as botas e enrolar os sacos de dormir, a refei­ção já estava pronta: uma caneca deorsh em ebulição e um cubo degichy-michy dissolvido pela água quente e transfor­mado numa espécie de massa de broa. Mastigávamos vaga­rosamente, solenemente, apanhando no chão qualquer miga­lha que caísse. O fogareiro esfriava enquanto comíamos. Empacotamos o resto: panelas, canecos, fogareiro. Enfia­mos nossos sobretudos com capuz e nossas luvas grossas e deslizamos para o ar livre. A frieza da atmosfera era incrível! Todas as manhãs tinha que me reacostumar. Se já tivéssemos saído antes para nossas necessidades fisiológicas, essa segunda saída então era ainda mais penosa.

Algumas vezes nevava, outras vezes uma imensa luz, maravilhosamente dourada e azulada, do dia nascente, se estendia através daquelas milhas de gelo; mas em geral era tudo cinzento mesmo.

Levávamos o termômetro para dentro da tenda, duran­te a noite, e quando saíamos era curioso observar seu pon­teiro girar violentamente para a direita (os mostradores gethenianos se lêem ao contrário dos nossos ponteiros de relógio), tão depressa que mal podíamos ver caindo vinte, cinqüenta, oitenta graus, até que parava em algum ponto entre zero e sessenta negativos.

Um de nós desmontava a tenda e a dobrava, enquanto o outro ajeitava os embrulhos no trenó; a tenda era colocada por cima de tudo e bem amarrada. Estávamos prontos para nos atrelarmos aos arreios e esquiar. Pouco metal era usado nessas correias e arreios, mas algumas fivelas eram de liga de alumínio, impossíveis de abotoar com luvas e que nos queimavam os dedos desnudados como se estivessem incandescentes. Precisava tomar muito cuidado com meus dedos quando â temperatura ficava abaixo de vinte graus, especialmente quando ventava, pois poderiam ficar congelados em segundos. Meus pés nunca foram atingidos, e isto é um fator da maior importância numa jornada de inverno, onde uma exposição de uma hora ao frio intenso pode aleijar uma pes­soa por toda a vida.

Estraven tivera que calcular meu tamanho, e as raque­tas de neve que ele comprara para mim eram um pouco maiores, mas um par extra de meias ajustava-as perfeitamen­te. Calçamos os esquis e atrelamo-nos o mais rápido possí­vel; quando as lâminas deslizantes se recobriam de gelo nós as limpávamos e partíamos novamente.

Algumas manhãs, após uma nevasca forte, tínhamos que perder um bom tempo desenterrando com pás a tenda e o trenó, antes de poder caminhar. A neve recente não era difícil de cavar embora fizesse montes impressionantes ao nosso redor; eles eram o único empecilho com que nos defrotávamos por centenas de milhas, a única coisa que fazia relevo naquele lençol de gelo.