— São os inspetores de Tibe — ele ofegava e sua voz era amarga. Girou para o lado, e disparamos para trás da pequena elevação em que já tínhamos subido, procurando a proteção mais próxima. Lá passamos o longo dia, numa valeta entre as árvores dehemmen, seus galhos avermelhados bem baixos em torno de nós, vergados ao peso da neve. Discutimos muitos planos de ir ou para o norte ou para o sul da fronteira, para ficarmos livres desta zona muito conturbada, ou tentar ultrapassar as montanhas a leste de Sassinoth, e até mesmo de voltar para o norte do país, na zona quase desértica — mas cada idéia tinha que ser posta de lado. A presença de Estraven já tinha sido denunciada e não poderíamos mais andar por Karhide às claras, como tínhamos feito até então. Nem poderíamos viajar mais secretamente por longas distâncias, pois não tínhamos tenda, nem alimento nem muita força. Nada restava a não ser uma escapada fulminante através da fronteira, ali defronte.
Ficamos escondidos naquele buraco escuro, sob árvores sombrias e bem próximos um do outro para não desperdiçarmos o calor do corpo. Lá pelo meio-dia, Estraven cochilou um pouco, mas eu estava com muito frio e fome para poder dormir; fiquei deitado ali, numa espécie de estupor, tentando me lembrar das palavras que ele me citara uma vez: “Dois são um só, vida e morte jazendo contíguas”. Era como quando estávamos no interior da tenda, nos gelos — mas agora sem abrigo, sem alimento, sem calor; nada mais restava a não ser nosso companheirismo, e isto logo ia acabar.
O céu se encobriu de tarde e a temperatura começou a cair. Mesmo naquela toca, estava muito frio para se ficar imóvel. Tínhamos que marchar em volta e mesmo assim, ao escurecer, fui tomado de uma crise de tremores como a que sentira no caminhão-prisão a caminho de Pulefen. A escuridão parecia levar séculos para chegar. No tardio crepúsculo azulado abandonamos a valeta e rastejamos atrás de árvores e moitas até podermos distinguir a cerca da fronteira, uns pálidos pingos avermelhados salpicando a neve. Nenhuma luz, nem som ou movimento. Da direção sul, bem distante, vinha o difuso clarão de uma cidadezinha, alguma minúscula vila de Orgoreyn para onde Estraven poderia se dirigir com seus documentos de identificação quase inaceitáveis e ter assegurada pelo menos uma noite na prisão da comensalidade ou talvez na próxima fazenda voluntária. De repente, só neste último instante, vi o que meu egoísmo e o silêncio de Estraven tinham me ocultado: para onde ele estava indo e o que o aguardava. — Therem, espere!
Mas ele já se despencara, voando colina abaixo: um esquiador esplêndido e veloz e desta vez sem me ter como empecilho. Disparou numa longa e rápida descida encurvada, fugia de mim e ia direto para os guardas armados da fronteira. Creio ter ouvido gritos de aviso ou ordens de parar, e uma luz se acendeu em algum lugar, não estou certo; de qualquer forma, ele não parou e partiu como um raio em direção à cerca, e eles o derrubaram quando a atingiu! Não usavam a pistola sônica, mas as espingardas de caça, antiga arma que explode fragmentos de metal num disparo. Atiraram para matar. Estava morrendo quando o alcancei, esparramado no chão e sem os esquis, fincados na neve, o peito estraçalhado pelos tiros. Segurei-lhe a cabeça e chamei por ele, mas não me respondeu; apenas saindo do tumulto e da desagregação de sua mente, quando penetrava na inconsciência, emitiu claramente e uma só vez: “Arek!” Dessa forma, fundiu-nos ambos no mesmo amor. Então silenciou para sempre. Continuei segurando-o, ajoelhado ali na neve, enquanto morria. Deixaram-me ficar ali com ele. Depois me ergueram, levaram-me numa direção, ele em outra, eu para a prisão, ele para as trevas.
XX
Missão sentimental
Em alguma parte do diário que Estraven escrevera durante nossa jornada através dos gelos de Gobrin, ele se interrogara por que seu companheiro tinha vergonha de chorar. Poderia ter lhe dito então que não era vergonha, e sim temor. Agora eu atravessava o vale do Sinoth, nesta noite da sua morte, através desse país gelado que está além do medo. Lá descobri que se pode chorar o quanto se queira, mas não adianta nada.
Fui levado de volta a Sassinoth e feito prisioneiro, porque estivera na companhia de um banido e mais provavelmente porque não sabiam o que fazer comigo. Desde o começo, mesmo antes da chegada das instruções oficiais de Erhenrang, trataram-me bem. Minha cela da prisão era um quarto na Torre dos Senhores em Sassinoth; tinha uma lareira, um rádio e eram servidas cinco fartas refeições diárias. Não era confortáveclass="underline" a cama dura, as cobertas leves, o piso sem tapetes e o ar frio — como em qualquer quarto em Karhide. Mas me enviaram um médico em cujas mãos e voz encontrei mais conforto e bem-estar do que jamais obtivera em Orgoreyn. Após ele ter-me feito uma primeira visita, a porta ficou destrancada. Lembro-me dela aberta e eu desejando que estivesse fechada por causa da fria correnteza que vinha do corredor. Mas não tinha nem força nem ânimo de me levantar e ir lá fechá-la. O médico, um jovem grave e com atitudes maternais, disse com ar de pacífica certeza: “O senhor tem sido subalimentado e se esforçou demais por uns cinco ou seis meses. Está no limite da exaustão. Não há mais nada a ser feito. Fique deitado e repouse. Como os rios gelados nos vales, no inverno. Fique quieto. Tenha paciência”.
Mas assim que adormecia, parecia que estava entrando naquele caminhão com os outros, todos fedendo, tremendo, nus, comprimidos uns contra os outros para aquecer. Todos menos um, que estava contra a porta de grades, com a boca repleta de sangue coagulado. Ele era o traidor. Ele tinha fugido, desertando-nos, abandonando-nos. Acordava com raiva, uma débil raiva que me fazia tremer e se transformava em lágrimas frágeis.
Devo ter estado bem doente, pois me recordo dos efeitos da febre alta e de que o médico ficara comigo por mais de uma noite. Não consigo relembrar o que se passou, apenas de ter dito a ele e sentido minha voz lamurienta:
— Ele poderia ter parado. Ele viu os guardas. Ele foi direto em direção às balas.
O jovem médico não retrucou logo.
— Não está dizendo que ele se matou?
— Talvez.
— Isto é uma coisa cruel de se dizer de um amigo. Não acredito que Harth rem ir Estraven fosse capaz disto.
Não me lembrara, quando falei, do desprezo que essa gente tem pelo suicídio. Não é para eles, como para nós, uma opção. É a abdicação da opção, um ato de deslealdade, a própria traição. Para os karhideanos, segundo nossos padrões, o crime de Judas não está na sua traição a Cristo, mas naquele gesto que, selando o desespero, nega a chance de perdão, mudança, vida — seu suicídio.
— Então vocês não o chamam Estraven, o Traidor?
— Nunca o fiz. Há muitos que nunca levaram em consideração a acusação contra ele, Sr. Ai.
Mas eu estava incapaz de ver qualquer consolo nisto, e exclamei, atormentado:
—- Então, por que eles atiraram nele? Por que está morto?
Para isto não encontrou resposta, pois não havia nenhuma.
Eu nunca fui interrogado de maneira formal. Só me perguntaram como saíra de Pulefen e entrara em Karhide e qual o destino e o objetivo da mensagem em código que enviara pelo rádio. Disse-lhes:
— Essa informação foi enviada diretamente a Erhenrang, ao rei.
O assunto da nave foi mantido secreto, mas as notícias da minha fuga de uma prisão orgota, minha viagem através dos gelos eternos em pleno inverno, minha presença em Sassinoth, tudo era noticiado e comentado livremente. O papel desempenhado por Estraven não era mencionado, nem sua morte. E no entanto eram fatos conhecidos. Segredo em
Karhide é em grande parte uma questão de discrição — de um silêncio tácito e reconhecido —, uma omissão de perguntas, e não uma omissão de respostas. Os boletins falavam apenas do Enviado Sr. Ai, mas todos sabiam que era Harth rem ir Estraven que tinha ido me arrancar das mãos orgotas e me trouxera através dos gelos até Karhide, para dar um desmentido completo da história dos comensais sobre minha súbita morte de febre de horm no último outono em Mishnory.