O médico de Sassinoth veio me ver. Sua voz quieta e seu rosto, uma feição séria e jovem, nem de homem nem de mulher, um rosto humano, era um alívio para mim, familiar, direito… Após me mandar ir para a cama, administrando-me um tranqüilizante suave, falou: — Já vi seus companheiros de missão. Isto é uma coisa maravilhosa, a vinda de seres que vivem nas estrelas. E durante a minha vida!
Aí estava, novamente, o prazer, a coragem, que é o mais admirável no espírito dessa gente — como em qualquer espírito humano —, e, embora não pudesse partilhar isto com ele, negá-lo seria uma atitude detestável. Disse, sem sinceridade, mas com absoluta verdade: — É também uma coisa maravilhosa para eles chegar a um novo mundo, a uma nova humanidade.
No fim daquela primavera, no mês de Tuwa, quando as enchentes de degelo estavam baixando e viajar tornou-se possível de novo, tirei umas férias da minha pequena embaixada em Erhenrang e fui para o leste. Minha gente tinha se espalhado, agora, por todo o planeta. Desde que fôramos autorizados ao uso de carros aéreos, Heo Hew e três outros tomaram um e voaram sobre Sith e o Arquipélago, nações do hemisfério marítimo que eu tinha negligenciado por completo. Outros estavam em Orgoreyn e dois, relutantes, em Perunter, onde o degelo nem sequer começara, até Tuwa, e tudo voltaria a se congelar. Tulier e Kesta estavam se saindo muito bem em Erhenrang e sabiam como solucionar qualquer emergência. Nada era urgente. Afinal, uma nave partindo imediatamente do mais próximo aliado de Inverno não poderia chegar antes que dezessete anos, em tempo planetário, tivessem transcorrido. Inverno é um mundo marginal, quase no limite do habitável. Para fora, em direção ao Orion meridional, nenhum mundo fora descoberto onde vivessem homens. E é longo o caminho de volta entre Inverno e os primeiros mundos dos ecúmenos, os mundos centrais de nossa raça: cinqüenta anos até Hain-Davenant e toda uma vida até a Terra. Não há pressa.
Cruzei a cordilheira do Kargav agora pelos passos inferiores, numa estrada que serpenteia ao longo e acima da costa do mar meridional. Fiz uma visita à primeira vila em que eu vivera quando os pescadores me trouxeram das ilhas de Horden há três anos; o povo desse lugar recebeu-me, agora como então, sem a menor surpresa. Passei uma semana na grande cidade portuária de Thather, na embocadura do rio Ench, e então, começando o verão, iniciei minha caminhada a pé até a Terra de Kerm. Andei para o leste e para o sul naquele país escarpado e áspero, cheio de penhascos, colinas verdes, grandes rios e casas solitárias, até chegar ao lago Icefoot. Das margens do lago, olhando para as montanhas, vi uma luz que conhecia: o revérbero, a difusão branca do céu, a cintilação das geleiras que jaziam além mais no alto. Os gelos lá estavam.
Estre era um lugar muito antigo. Seu lar e edificações eram todos de granito cortado das pedreiras que existiam nos flancos onde estava situada. Era descampada, povoada pelo barulho do vento.
Bati e a porta se abriu. Eu disse:
— Peço a hospitalidade do domínio. Eu era amigo de Therem de Estre.
Quem me abriu a porta foi um esbelto jovem de olhar grave, de uns vinte anos de idade. Aceitou minhas palavras em silêncio e silenciosamente fez-me entrar no lar. Levou-me ao lavatório, à rouparia e à grande cozinha e quando providenciou para que o estranho pudesse se lavar, vestir-se e alimentar-se, deixou-me entregue a mim mesmo num quarto cuja estreita janela, em fenda, dava para o lado do lago e das florestas dethore que existem entre Estre e Stok. Era uma terra árida, uma casa árida. O fogo crepitava forte na lareira maior, dando, como sempre, mais calor para a vista e para o espírito que para a carne, pois o chão e as paredes de pedra e o vento lá fora, vindo das montanhas e dos gelos, consumiam a maior parte do calor das chamas. Mas não senti tanto o frio quanto costumava nos meus primeiros dois anos em Inverno. Já vivera muito tempo numa terra fria, já me acostumara.
Em uma hora, o rapaz (ele tinha a delicadeza ágil de uma moça no seu jeito e nos movimentos, mas nenhuma garota poderia conservar tanto tempo um silêncio tão obstinado) veio ao meu encontro para me dizer que o senhor de Estre iria me receber, se me agradasse estar com ele. Segui-o escadas abaixo, através de longos corredores onde uma espécie de jogo de esconde-esconde estava se realizando. Crianças disparavam ao nosso lado, pequeninos circulavam em torno, com gritos de agitação, adolescentes deslizavam feito sombras de porta em porta, com as mãos sobre as bocas para não cair na risada. Uma coisinha gorducha de cinco ou seis anos carambolou nas minhas pernas, caiu e se agarrou nas mãos do meu acompanhante como proteção. “Sorve!”, ele guinchou, olhando-me todo o tempo com seus grandes olhos bem abertos, “Sorve, vou me esconder na cervejaria!” E lá se foi ele como uma pedrinha redonda lançada por uma atiradeira. O jovem Sorve não se alterou e me conduziu ao salão interno onde estava o Lorde de Estre.
Esvans Harth rem ir Estraven era um velho, já passado dos setenta, aleijado por uma artrose dos quadris. Sentava-se ereto numa cadeira de balanço perto do fogo. Seu rosto era largo, muito marcado e gasto pelo tempo, como uma rocha numa torrente — mas um rosto calmo, terrivelmente calmo.
— É o Enviado Genry Ai?
— Sou eu.
Olhou-me e eu para ele. Therem fora o filho carnal deste velho senhor. Therem era o mais moço, Arek o mais velho, aquele irmão cuja voz ele ouvira na minha quando eu falava mentalmente com ele; ambos mortos agora. Não conseguia descobrir nada de parecido com meu amigo naquelas feições calmas, duras e velhas que meu olhar perscrutava. Não achei nada, apenas a certeza, o fato incontestável, da morte de Therem.
Eu viera numa missão sentimental a Estre, esperando encontrar consolo. Não havia consolo; e por que deveria essa peregrinação ao lugar da infância de meu amigo fazer alguma diferença, encher qualquer ausência, acalmar algum remorso? Nada poderia ser mudado agora. Minha vinda a Estre tinha, todavia, uma outra finalidade, e esta eu poderia realizar.
— Estive com seu filho nos meses que antecederam sua morte. Estava com ele quando morreu. Trouxe o diário que ele mantinha. E se existe algo que eu possa lhe contar desses dias…
Nenhuma expressão especial apareceu na sua fisionomia. Esta calma não era para ser alterada. Mas o jovem, com um movimento súbito, saiu da sombra para a luz entre a janela e o fogo e falou asperamente:
— Em Erhenrang eles ainda o chamam Estraven, o Traidor.
O velho senhor olhou para o rapaz, depois para mim.
— Este é Sorve Harth — disse —, herdeiro de Estre, filho dos meus filhos.
Não havia nenhuma interdição de incesto ali, eu bem o sabia. Mas a estranheza disto, para mim, um ser da Terra, e a estranheza de ver um relâmpago do espírito do meu amigo neste rapaz sombrio, impetuoso e provinciano, tiraram-me a palavra por instantes. Quando consegui falar, minha voz tinha perdido a firmeza.
— O rei vai revogar sua sentença. Therem não foi um traidor. Que importa que algum tolo o chame assim?
O velho senhor acenou vagarosa e suavemente com a cabeça.
— Importa, sim — disse ele.
— Vocês cruzaram os gelos de Gobrin juntos? — Sorve perguntou. — Você e ele?
— Sim. Cruzamos.
— Gostaria de ouvir esta história, Sr. Enviado — disse o velho Esvans, sempre calmo. Mas o rapaz, o filho de Therem, gaguejou:
— Quer nos contar como morreu? Quer nos contar sobre os outros mundos, nas estrelas, as outras espécies de homens, as outras vidas?
O calendário getheniano e o relógio
O ano
O período de revolução de Gethen é de 8 401 horas padrão Terra, ou 0,96 do ano padrão Terra.
O período de rotação é de 23,08 horas padrão Terra. O ano getheniano dura 364 dias.