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Desde que tinham começado o namorico que Luís não voltara a beijar Amélia; não era por falta de tentativas, mas Por pudor dela. A rapariga evitava-lhe os lábios e a intimidade; dizia que não era chegado o momento e que precisavam de ter cuidado, que ela era uma rapariga de bem, que não queria que alguém a tomasse por uma chasqueta. Resignado, Luís percebeu que não lhe restavam senão as conversas e os poemas recitados no passeio até ao liceu. O namoro tornara-se

platónico, feito de palavras e de olhares e de desejos e pouco mais.

Então andas preocupada com as tuas colegas", disse ele, retomando o tema que a atormentava. "O que aconteceu?"

Foi ontem, no final da aula de Francês. Reparei que as minhas amigas se juntaram em grupinho aos murmúrios e lançavam espreitadelas vigilantes para todo o lado, como se tivessem medo de ser ouvidas."

Essas parvas estão sempre assim, aos segredinhos..."

Pois é. Aquilo é tão normal que eu pensei isso, achei que eram as palermices do costume."

Quais palermices? "

Sei lá. Pensei que estavam a comentar o ar janota do professor de Francês ou o penteado da Milú, essas coisas. Mas ontem notei que se botavam a olhar para mim enquanto coscuvilhavam umas para as outras e mais inquieta fiquei quando elas se calaram à minha passagem."

E qual é o problema?"

O Luís, é óbvio que estavam a falar de mim!" Que te importa isso?" "Ora, não gosto!

"E)deixa-as tagarelar à vontade." Estendeu o braço e procurou-lhe a mão. "Anda cá, lindona."

Mas Amélia afastou-se.

"Temos de ter cuidado, Luís. Já há falatório."

O rapaz soltou uma gargalhada e abriu muito os olhos, numa expressão de indiferença.

"E depois?"

"Para ti pode não ter importância nenhuma. Achas tudo engraçado, não achas? Vocês, os rapazes, são todos iguais! Olha que para mim isto é tudo muito aborrecido, ouviste? Ando toda arreliada!"

"Deixa-as falar, querida. Cão que ladra não morde."

"Isso é o que tu pensas", protestou ela. "Lembra-te que elas não são cães. São cadelas."

"É tudo o mesmo."

"Não é não. Além do mais, nesta terra a mordidela está no ladrar. Tenho de zelar pela minha reputação."

"Ora! O que te interessa a ti o que essas belfurinheiras dizem?"

"Não são elas que importam, Luís. É a minha reputação que está em jogo. É preciso que elas parem com o falatório."

"Ai é? E como tencionas convencê-las a calarem-se?"

Amélia ficou a observar o piso húmido da manhã, matutando no problema. Boa pergunta. Como calá-las? Era realmente preciso pôr cobro à situação antes que as coisas se descontrolassem. Talvez se impusessem medidas radicais, considerou, mas logo repensou o assunto: teria coragem para as tomar?

"Se calhar devíamos passar a ver-nos menos", disse, a voz muito baixa. Como se a afirmação lhe tivesse dado uma súbita força e resolução, fez nesse momento tenção de cruzar a rua. "É melhor começarmos agora." Apontou para o outro lado. "Eu vou daquele lado do passeio e tu vais deste.

Assim não nos vêem juntos."

"Estás louca?"

parou a meio da rua, voltou-se para o namorado, abriu os braços e arregalou os olhos interrogativamente. Então diz-me: como é que as calamos?" Nao ligues, Amelinha." Luís aproximou-se, segurou-a pelos onbros e fitou-a nos olhos. "Ouve o que te digo: deixa essas alcoviteiras tagarelarem à vontade. Daqui a uns dias já se calam

, vais ver.

Mas não se calaram. Dos comentários em surdina, as raparigas da turma passaram aos gracejos. A liderar a má língua estava Maria das Dores, a mais insolente da classe, uma espigadota:a morena muito temida entre as moças do liceu pela língua afiada e pelos modos atrevidos.

depois dos primeiros gracejos abafados por risadinhas tontas, maria das Dores notou no intervalo de uma aula que Amélia esquadrinhava o corredor do liceu com o olhar. Depois de lançar um sinal cúmplice às amigas, a morena destacou-se do grupo e atirou em tom de escárnio a primeira piada em voz alta.

Então? Andas à procura do teu cão-d'água?" sucederam-se os risinhos infantis e Amélia congelou, parando um momento para pensar no que deveria dizer ou fazer. Jesus dizeres transmontanos, um cão-d'água é um rapaz que persegue uma rapariga para namorar. Não se tratava de uma laracha grave, considerou, pelo que se fez despercebida e deixou passar. No entanto, não deixava de ser sintomático que os chistes já lhe fossem lançados para serem ouvidos.

Nada disse ao namorado, mas, numa manhã da semana seguinte, Maria das Dores aproximou-se com ar de gozo perante o olhar do grupinho do costume e observou a bata branca de Amélia como se estivesse a contemplar um deslumbrante vestido de baile.

"Então, Amelinha? Hoje vens toda bem posta!"

Amélia hesitou, pressentindo uma provocação.

"Eu?", admirou-se, defensiva, baixando os olhos para a bata que trazia vestida. "Venho como de costume..."

"Mas muito bem tratadinha, a bata passada que é um primor."

"Que tens tu a ver com isso?"

"Nada, nada." Risinhos lá atrás. "Isso são decerto cuidados para o teu galaripo."

Mais risinhos do grupo.

"Que galaripo? Do que estás tu a falar?"

Maria das Dores aguçou a expressão maliciosa, satisfeita por ter batido no ponto certo.

"Ora esta! Estás com o pocho, é? Que maus humores vêm a ser esses?"

"Não são maus humores nenhuns. O que eu não percebo é onde queres tu chegar..."

"Não percebes, ora não?"

"Não, não percebo!"

Maria das Dores pôs as mãos à cintura e fez um esgar de rapariga sabida.

"Não te faças de inês-d'orta! Eu sei muito bem dos teus segredinhos."

"Quais segredinhos?"

"Essas tuas conversinhas com o teu cão-d'água. Ele anda à cagadinha, à espera do momento oportuno para te ferrar o dente. E tu a dares-lhe trela..."

"Não digas tontices."

"Chama-lhe tontices, chama-lhe." Torceu o nariz. "Por que razão não se arreda ele de ao pé de ti?"

"Ora, somos amigos. O que tem isso?"

"Amigos, hem? Hmm... cá para mim estás-te a pilar pelo teu janota, é o que; é, esse ailila emproado com quem tu agora andas."

"O Luís não é nenhum ailila!"

"À certa!", riu-se a outra, olhando para as amigas a solicitar uma reacção cúmplice.

Sucederam-se os habituais risinhos e Maria das Dores voltou a fitar Amélia. "Olha lá, se queres que te diga está-me cá a parecer que se calhar vocês já foram mais longe do que deviam..."

"Que queres dizer com isso?"

"Foram ou não foram?"

"Diz lá, o que queres dizer com isso?"

Maria das Dores cravou-lhe o olhar como quem quer medir a reacção à sua pergunta.

"Ele não te desvirginou?"

Amélia nem queria acreditar no atrevimento da colega.

"O quê?! O quê?!"

"Tu percebes muito bem."

Tremendo de fúria e de vergonha, a rapariga chegou a duvidar do que escutara.

"O que é que tu disseste?"

"Estou a perguntar-te se não te tornaste amásia dele."

Pab!

Foi como se a mão direita adquirisse vontade própria, libertando-se do (corpo de Amélia e comportando-se como se tivesse vida autómoma. A bofetada reverberou pelo corredor do liceu com fragor. Num instante estava Maria das Dores a sorrir-lhe com ar zombeteiro, no momento seguinte viu Maria das Dores com ;a face descaída para a direita, a bochecha esquerda subitamente ruborizada, os cabelos num desalinho, Amélia a sentir a palma da mão arder com a força da inopinada estalada. Foi tudo estranhamente rápido e lento, brusca a bofetada, vagarosa a sequência de acontecimentos que se seguiram ao estalo, o olhar pasmado de Maria das Dores, o ar boquiaberto das colegas atrás dela, o pasmo que se apossou da própria Amélia ao ver a mão adquirir inesperada vida para defender o seu bom nome.