São quinhentos escudos por mês." Levantou os olhos do papel. "Nada mau, hem?"
Sentado diante da secretária do polícia e já refeito do choque, Luís cruzou os braços e carregou as sobrancelhas.
"Desculpe, mas há aqui um engano. Eu não vou fazer nada disso. Aliás, nem consigo perceber onde foi o senhor buscar a ideia de que eu aceitaria um trabalho destes, que vai contra todas as minhas convicções. Eu não sou da situação e nunca serei um informador da polícia de vigilância. Eu sou, e serei sempre, um médico veterinário."
"Claro que é um médico veterinário. E um médico veterinário que nos vai dar informações sobre quaisquer actividades suspeitas do sujeito que está encarregado de vigiar."
"Já lhe disse que nunca farei isso."
O inspector inclinou-se sobre a secretária, apoiou os cotovelos nela e olhou fixamente para o veterinário, numa postura de firmeza e intransigência.
"E eu estou a dizer-lhe que fará."
"Mas onde diabo foi o senhor buscar essa ideia? Como é possível que acredite que eu aceitarei ser informador da PVDE?"
"O cavalheiro não tem alternativa."
"O que quer dizer com isso?" "Se não aceitar, irá apodrecer na cadeia." "O
quê?"
"Prometo-lhe muitos anos atrás das grades." "O senhor deve estar a brincar..." "Vai para a cadeia." "Mas... porquê? Qual é a acusação?" Aniceto Silva manteve os olhos fixos, sem pestanejar, como se fossem adagas cravadas em Luís. "Homicídio."
XIV
Nunca como nesse instante o sentimento de irrealidade se abatera tão brutal e friamente sobre Luís. A palavra que acabara de escutar ecoava-lhe na mente como um disco riscado no gramofone. Parecia-lhe que o inspector a repetia vezes sem conta ao seu ouvido,
"homicídio", "homicídio", "homicídio", pronunciada sempre no mesmo tom glacial.
Estava sozinho no gabinete e mal se apercebia disso. Registara vagamente a saída do inspector Aniceto Silva para ir buscar não sabia bem o quê, mas a confusão na sua cabeça era de tal ordem que sentia dificuldade em concentrar-se. Tudo o que sabia, tudo o que preenchia a sua mente, era a palavra "homicídio". O que significava que seria obrigado a fazer uma escolha: ou se tornava informador ou seria punido. A opção parecia simples, mas revelava-se terrivelmente complicada. E, no meio de tudo aquilo, o mais surreal era que havia sido traído pelo Fernando, o seu velho amigo da faculdade. Realmente, nunca se conhecem verdadeiramente as pessoas,
pensou. Era verdade que ele sempre fora das direitas, mas denunciar um amigo? De facto, quando achamos que...
"Presumo que já se conheçam."
A voz do inspector rompeu a cadeia de pensamentos de Luís. Com um sobressalto, olhou em direcção da porta e viu Aniceto Silva convidar alguém a entrar. Um vulto colossal assomou ao gabinete e imobilizou-se a olhar para Luís.
"Chico!"
Já não era um rapagão, mas um homenzarrão, de barba rala e olhar vivido. Vinha acompanhado por um outro homem à civil, presumivelmente um agente da PVDE, e manteve os olhos baços pousados com indiferença no veterinário.
"Reconhece-o?", perguntou o inspector, dirigindo-se a Francisco mas com o dedo a apontar para Luís.
"Sim", assentiu Francisco.
"Foi ele que matou o senhor Constantino Latino?"
"Foi."
"De certeza?"
"Absoluta."
A voz nem vacilou e Luís observava-o boquiaberto, incapaz de pronunciar uma sílaba que fosse, estarrecido com a enormidade do que acabava de ouvir.
"Muito obrigado, senhor Francisco, pelo seu precioso testemunho", disse o inspector, quase deferente. "O Amaro acompanha-o até à saída."
O segundo homem à civil puxou Francisco pelo braço e ambos desapareceram para além da porta, que se fechou de imediato. Com movimentos ligeiros, o inspector contornou a secretária e sentou-se na sua poltrona, sempre seguido pelo olhar atónito de Luís.
"O cavalheiro está esclarecido?"
O veterinário permaneceu mais um instante com ar embasbacado.
"Mas... isto é... é absurdo", balbuciou, tentando reordenar os pensamentos. "O que o Chico disse não é verdade. É uma mentira hedionda."
O polícia esboçou uma expressão trocista.
"Estou quase a chorar por si", gracejou. "Acho que nem vou dormir esta noite."
"Mas o senhor tem de acreditar em mim! Eu não matei ninguém!"
"Claro que acredito em si! Acredito em si e acredito em Maomé!"
"Mas juro-lhe que estou a dizer a verdade!"
"Claro que jura", riu-se. "Na hora do aperto, todos juram o que quer que seja. Até culpam a mãezinha se for preciso!"
Luís sacudiu a cabeça, como se tentasse expulsar a nuvem que lhe toldava o pensamento. Assim não iria lá. Vendo as coisas com maior lucidez, tornava-se evidente que o inspector não ia acreditar nele, fossem quais fossem as circunstâncias. Não lhe convinha.
Endireitou o corpo e fez um esforço para controlar os nervos; não era o momento adequado para fraquejar.
"Há uma testemunha", disse, preparando-se para puxar do ás que trazia guardado na manga.
"Claro que há", disse o inspector. "Chama-se Francisco Rodrigues e acabámos de o ouvir identificar o assassino do senhor Constantino Latino."
"Não estou a falar no Chico", corrigiu Luís. "Há uma terceira testemunha. E uma pessoa que poderá dizer quem está a falar verdade e quem está a mentir: se eu, se o Chico."
O homem da PVDE dedilhou a madeira da secretária como um pianista a percorrer um teclado.
"O cavalheiro tem a certeza de que quer trilhar esse caminho?"
"Peço desculpa!", exclamou Luís, surpreendido com a falta de surpresa manifestada pelo polícia perante a revelação que acabara de fazer. "Pois se lhe estou a dizer que existe uma outra testemunha dos eventos. Não acha que isso é pertinente para o apuramento dos factos?"
"Volto a perguntar-lhe", insistiu Aniceto Silva, a voz pausada e tensa, como se lhe desse sinal de que havia ali uma armadilha. "O cavalheiro tem a certeza de que quer trilhar esse caminho?"
Luís hesitou, desconcertado com a firmeza daquele tom.
"Tenho alguma alternativa?"
"O cavalheiro lá sabe da sua vida. Mas, se invocar uma nova testemunha, teremos de a ir interrogar, está a entender?"
"Sim..."
"E quando a formos interrogar iremos fazer-lhe muitas perguntas. Uma delas diz respeito a certas actividades no estábulo ou no celeiro da quinta onde decorreram os acontecimentos. Serão perguntas inconvenientes, claro, até porque pode dar-se o caso de a dita testemunha ser casada."
Cravou os olhos no seu interlocutor. "Faço-me entender?"
O veterinário remexeu-se na cadeira, crescentemente desconfortável com as insinuações.
"Não estou a ver onde quer o senhor chegar."
"Claro que está", devolveu Aniceto Silva, sempre no mesmo tom tenso e agreste. "Até se pode dar o caso de o cornudo estar neste momento na paz dos anjos, ignorando em absoluto as actividades nocturnas da sua rica e ardente esposa. Porém, caso tenhamos de a interrogar, decerto essa santa
ignorância se esfumará e o referido sujeito tomará conhecimento de coisas que, para ser sincero, e a bem da harmonia na vida familiar, seria dispensável que viesse a saber." Franziu o sobrolho, para enfatizar a ideia. "Continuo a fazer-me entender?"
Luís estreitou os olhos, sem saber o que responder. O polícia interpretou o silêncio como o assentimento de quem nada queria admitir, mas também não tinha maneira de negar.