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"O que me obriga a fazer-lhe uma pergunta: o cavalheiro tem a certeza de que há uma outra testemunha neste caso?"

Uma gota de suor nasceu do cabelo castanho de Luís e deslizou-lhe pelas têmporas. Respirou fundo e recostou-se na cadeira, vencido pela pressão.

"Não."

O inspector sorriu.

"Bem me queria parecer."

Luís sentia-se perdido, mas lançou uma derradeira tentativa, como o náufrago que estica as mãos em direcção à distante bóia, na esperança de que as correntes a arrastem até ele.

"O senhor não se preocupa com a verdade?"

"Claro que preocupo", exclamou Aniceto Silva. "A verdade é que o regime salvou Portugal. A verdade é que urge defender o regime, custe o que custar, porque defender o regime é defender Portugal. O que me interessa a mim se foi o cavalheiro que matou um pobre labrego lá para trás do Sol posto ou se o criminoso foi um qualquer energúmeno desmiolado? O que me interessa isso?"

Colou o polegar ao peito. "A minha única verdade é a defesa do Estado Novo e da pátria. As outras verdades não passam de ferramentas ao serviço da verdade suprema, entendeu?"

Comprimido na sua cadeira, Luís sabia-se perdido. Racionalizou o que já intuíra: o polícia não tinha qualquer interesse em identificar o verdadeiro assassino do caseiro de Castelo de Paiva. Com toda a probabilidade, até tinha consciência de que o veterinário não matara ninguém. Mas isso parecia-lhe manifestamente irrelevante. O crime não passava de um simples instrumento para o sujeitarem a chantagem, uma arma para o dobrarem, um expediente para o vencerem.

E vencido era coisa que ele estava já.

"O que quer de mim?"

-

"Já lhe disse. Preciso de si para substituir o meu informador de Vinhais, que vai ser transferido para outro lugar. Preciso de si para vigiar as actividades subversivas do doutor Garcia."

"E o que acontecerá âo caso de Castelo de Paiva?"

O inspector da PVDE encolheu os ombros.

"O que interessa isso?"

"Interessa-me a mim. O que acontecerá ao caso?"

"Nada."

"Nada como? O que vão fazer do Chico?"

"O senhor Francisco Rodrigues é um homem às direitas e nunca será condenado por uma coisa tão... tão ridícula. Já informámos o Ministério Público de que ocorreu um caso de troca de identidades e de que este senhor não é o homem procurado pelo homicídio do senhor Constantino Latino. Vai, por isso, ser devolvido à liberdade."

"E eu?"

"Se o cavalheiro se portar bem, também não lhe acontecerá nada. Muito pelo contrário, poderá até ser premiado por serviços relevantes prestados à nação."

"E se eu não me portar bem?"

"Nesse caso, temos já em nossa posse uma declaração do senhor Francisco Rodrigues a assegurar que foi o alferes

JOSÉ RODRIGUES DOS SANTOS

veterinário Luís Afonso quem partiu o pescoço ao senhor Constantino Latino, após a vítima ter intercedido em defesa da honra da senhora dona Amélia Branco."

Ao ouvir o nome de Amélia, Luís fuzilou o inspector com os olhos.

"O que quer dizer com isso?"

"Eu? Eu não quero dizer nada!", exclamou num tom sonso. "Quem está a fazer essa afirmação é o senhor Francisco Rodrigues no depoimento que assinou e que, se o cavalheiro se puser com palermices, será apenso ao processo."

"Os senhores vão acusar-me de ter tentado molestar a Amé... a senhora dona Amélia?"

"No caso de o cavalheiro se começar a armar em parvo, eu diria que sim." Abriu os braços e encolheu os ombros, num gesto de impotência. "É preciso um móbil para o crime, não é verdade?

Se o cavalheiro assassinou alguém, o juiz vai querer saber qual o motivo. Ora, se assim é, parece-me que este faz todo o sentido: o cavalheiro tentou molestar a senhora, o caseiro interveio em defesa das virtudes da dita donzela e o cavalheiro, num acesso de fúria, apertou-lhe o gasganete."

Desfraldou um sorriso malicioso. "Parece-me uma maneira elegante de ilibar a senhora de qualquer comportamento menos próprio, não acha?"

Luís baixou a cabeça, sentindo-se cercado por uma barreira de mentiras, meias verdades e obrigações morais. Acontecesse o que acontecesse, não poderia envolver Amélia naquela terrível confusão. As consequências seriam devastadoras.

"Estou a ver", murmurou, derrotado.

Os dedos do inspector tiquetaquearam com impaciência a madeira da secretária.

"Então?", perguntou. "Em que ficamos?"

Encolhido na cadeira, o veterinário não sabia o que dizer.

"Oiça, eu não... não consigo dar-lhe a resposta assim do pé para a mão", tartamudeou. "Dê-me algum tempo."

Aniceto Silva desferiu uma palmada sonora na secretária, como um juiz a martelar a mesa no momento da sentença.

"Tem vinte e quatro horas para me responder!", exclamou, pondo-se de imediato de pé e olhando para a porta. "Amaro!"

A porta do gabinete abriu-se e um homem fez continência.

"O senhor inspector chamou?"

"Leve-me este cavalheiro para o Governo Civil."

"Sim, senhor inspector."

Amaro aproximou-se de Luís, que se levantara e olhava interrogativamente para Aniceto Silva.

"Vou para o Governo Civil fazer o quê?"

O inspector colou o indicador às têmporas.

"Vai pensar."

"Pensar?"

Amaro pegou no braço de Luís e puxou-o em direcção à porta. O veterinário manteve os olhos fixos no inspector da PVDE, que se voltou a sentar na secretária e, antes de regressar aos papéis, lhe lançou uma expressão de desdém.

"Pode ser que uma noite aos quadradinhos o faça ver a razão", disse-lhe. "O cavalheiro está detido."

XV

Ao sair para o deslavado corredor do edifício pareceu-lhe que tinha cruzado a porta de um mundo irreal. A sequência dos acontecimentos seguintes deu-lhe a sensação de que tudo decorria como numa fita americana de segunda categoria, os sentidos embotados por uma estranha mistura de rapidez e lentidão, realidade e fantasia, dor e narcose. Luís sentia-se atarantado, um mero joguete que o agente Amaro arrastava pelas entranhas da sede da polícia de vigilância, virando à esquerda e à direita, dobrando esquinas, subindo escadas, percorrendo corredores.

O polícia imobilizou-se enfim diante de uma porta e empurrou-o lá para dentro. Era um compartimento esconso e quente, as paredes recortadas por traços de luz e manchas de sombras. As mãos do carcereiro puxaram-no para diante de uma enorme máquina coberta por um pano e voltada para uma parede nua, onde se encontrava apenas uma cadeira. Teve medo; era como se o encostassem a uma parede para o executarem.

"Senta-te!", ladrou Amaro.

Luís olhou-o aparvalhado, abismado por ver o actor da cena a sair da tela para o interpelar. Até o inusitado tratamento por tu lhe pareceu confirmar que tudo aquilo não era real, embora não fosse capaz de romper com aquele pesadelo entorpecedor.

"Senta-te, não ouviste?"

Obedecendo como um sonâmbulo, Luís sentou-se e encarou o ameaçador aparelho metálico diante do qual se posicionara. No instante em que viu a lente e percebeu que se tratava de uma máquina fotográfica, uma explosão de luz encandeou-o e no quarto estalou um clac. Tinha sido o flash que o iluminara de frente.

"Volta-te!"

O detido não percebeu a ordem e viu Amaro aproximar-se com impaciência.

"Olha lá, estás a reinar comigo?", perguntou em tom de acinte, as mãos nas ancas como um forcado. Agarrou-o pelos ombros e rodou-lhe o corpo para a direita. "Assim, palerma."

O agente desapareceu e um novo clarão iluminou o compartimento.

Clac.