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"Agora para o outro lado."

Desta vez Luís obedeceu e, sem ser necessário que o forçassem, voltou-se para a esquerda.

Mais um flash.

Clac.

Sem perder tempo, o agente tirou-o daquele quarto e levou-o até um balcão, onde lhe pegou na mão direita e a espalmou numa esponja de tinta. Imprimiu todos os dedos ao mesmo tempo numa folha e depois os quatro dedos em separado, à excepção do polegar. A operação foi repetida com a mão esquerda.

"Vai lavar as mãos", ordenou Amaro. "Depois tira tudo o que tens nos bolsos."

Em estado de choque, Luís ia obedecendo maquinalmente às ordens que lhe eram vociferadas de maus modos. Sentia-se destacado daquilo tudo, como se estivesse a observar a cena, não a vivê-la.

Encarava as coisas como espectador, não como actor, e foi com um misto de surpresa e curiosidade que se viu a si próprio a passar as mãos pela água que jorrava de uma torneira e a secá-las na toalha.

Levantou o olhar para o pequeno espelho diante do lavatório e espantou-se com os olhos baços que o reflexo lhe devolveu.

"Então?", rompeu a voz do agente Amaro. "Estás a ver se estás bonito? Despeja-me mas é esses bolsos, e já!"

Luís tirou tudo o que trazia nas calças e pousou todos os objectos pessoais em cima do balcão onde lhe haviam tirado as impressões digitais. O agente da PVDE pegou em cada um deles e anotou a sua descrição num formulário.

"Uma carteira de calfe", registou. "Uma carta de motorista com o número 8288." Tomou nota.

"Um passe da carreira de caminheta de Bragança." Mais um registo. "Uma caneta Conk-lin com o número 1902809." Rabiscou a referência. "Vinte e dois escudos e cinquenta centavos." Ergueu a cabeça e olhou para o detido. "Não tens o bilhete de identidade contigo?"

"Deixei-o na recepção ao entrar."

Amaro mandou outro funcionário buscar o documento. O homem reapareceu instantes depois e entregou-o ao agente.

"Um bilhete de identidade com o número 467845, do Arquivo de Identificação de Bragança."

Espreitou Luís. "Mais alguma coisa?"

"Não."

O agente da PVDE revistou-o de alto a baixo e no final deu-se por satisfeito. O formulário estava enfim completo.

Guardou-o numa pasta com o registo das impressões digitais e dirigiu-se a um armário. Tirou de lá um objecto metálico que tilintava e que Luís, absolutamente horrorizado, percebeu serem algemas.

"Estica os braços."

O agente colocou-lhe as algemas e contemplou o detido enquanto revia mentalmente todos os procedimentos. Estava tudo tratado, concluiu. Só faltava levá-lo para os calabouços do Governo Civil.

O braseiro do estio acolheu-os na rua.

"Vou assim?", espantou-se Luís, alteando os braços para exibir as frias argolas metálicas que lhe limitavam os movimentos.

Sentia-se chocado por ser obrigado a caminhar pela rua com as mãos agrilhoadas, à vista de todos, as sombras de carcereiro e recluso lambendo as pedras aquecidas pelo sol quente da tarde.

"O que queres tu, hã?", devolveu Amaro, com maus modos. "Ir de Rolls-Royce?" Deu-lhe um empurrão brutal que quase o fez tropeçar. "Toca a andar e caluda, meu grande camelo! Dizes mais uma e levas uma chapadona."

Calcorrearam o passeio em silêncio, Luís à frente com as mãos algemadas diante do ventre, atrás o agente sempre a empurrá-lo com o braço direito. A sensação de distanciamento regressou em força e deu consigo a encarar a cena como se fosse um mero transeunte, não a figura sobre a qual todos os olhos caíam naquela rua. Chegou a pensar que não passava tudo de um sonho, que tal coisa não lhe estava a suceder, mas logo dizia a si mesmo que não, que tudo aquilo era verdadeiro, que estava mesmo a ser arrastado por Lisboa como se fosse um vulgar criminoso.

O movimento cá fora era animado. Os transeuntes, sem descolarem os olhos do duo que saíra da sede da PVDE, aligeiraram o passo e tentaram passar despercebidos, apesar de os automóveis abrandarem para os condutores espreitarem o que se passava. No meio da cacofonia dos sons da rua soou o tilintar característico de uma campainha; era o triciclo dos gelados Esquimaux que passava, alegre e convidativo, conferindo à cena um toque de surreal jovialidade.

Esforçando-se por ignorar a atenção que estavam a atrair, guarda e detido dobraram a esquina e entraram no edifício do Governo Civil de Lisboa. Orientando-se dentro das instalações como se fosse da casa, Amaro levou o veterinário até aos calabouços e entregou-o ao responsável pelos serviços, a quem estendeu um documento.

"Assine-me a guia."

Antes de se ir embora, aproximou-se muito de Luís, como se o quisesse desafiar, e quase lhe encostou o nariz. Depois, com um movimento muito rápido e totalmente inesperado, desferiu-lhe um estrondoso estalo na cara.

Pab.

Com a bochecha incendiada, o recluso viu o agente rir-se e lançar-lhe um derradeiro olhar trocista.

"Porta-te bem, hem?"

A cela era relativamente fresca, sobretudo quando comparada com o calor que fazia na rua, mas isso estava longe de consolar o seu mais recente hóspede. Experimentando uma claustrofóbica dificuldade em respirar, Luís sentou-se na cama e escondeu o rosto entre as mãos, como se a treva pudesse apagar o horror em que se vira inesperadamente mergulhado, e começou a soluçar. Como era possível ter chegado àquele ponto? O que fizera ele para merecer tal tratamento? E, sobretudo, porquê ele? Porquê ele? Porque não outro?

Uma sensação de total e absoluto desespero e vulnerabilidade apossou-se de Luís. Sentia-se como um animal atirado para um curral à espera que o viessem buscar para a matança. Na verdade, para aquela gente era a isso que ele se resumia. Um animal que os iria refastelar no momento que considerassem mais oportuno. E não havia nada, mas absolutamente nada, que ele pudesse fazer.

Não tinha amigos a quem recorrer, não havia uma lei na qual confiar, a arbitrariedade parecia-lhe absoluta.

Chorava quase em silêncio, apenas denunciado pelos soluços ritmados, até que um gemido lhe nasceu das entranhas e se soltou pela garganta. Achava-se perdido, desorientado, incapaz de encontrar soluções para sair daquela embrulhada. Deitou-se na cama e encolheu-se, o rosto sempre tapado, o corpo dobrado na posição fetal; era já uma criança a tentar proteger-se do mundo hostil que a agredia.

No auge da aflição, sem saber como proceder e para onde se voltar, a respiração sufocada pela desesperança, ajoelhou-se no chão, os cotovelos apoiados na cama, a testa encostada às mãos, os olhos cerrados nas lágrimas, os dedos unidos numa prece, e começou a rezar. Ele que nunca rezava, ele que se ria das superstições da populaça ignorante e crédula, ele que acreditava que fora o homem que criara Deus e não o contrário, ali estava ele a orar como o mais fervoroso dos fiéis.

Entoou vários ave-marias e titubeou o pai-nosso, mas aqui embatucou nas palavras; conhecia o refrão inicial, mas apagavam-se-lhe as palavras algumas estrofes mais adiante. Constatando a sua ignorância, voltou às ave-marias e recitou-as num sussurro, as orações umas atrás das outras, numa ladainha contínua até aquele aperto asfixiante se ir esvanecendo.

"Ave-Maria-cheia-de-graça-bendita-sois-vós-bendito-o-fru-to-de-vosso-ventre-Jesus-Santa-Maria-mãe-de-Deus..."

As palavras tornaram-se um murmúrio imperceptível, como se o importante não fosse pronunciá-las, mas senti-las. Algo na mente lhe dizia que aquilo era um disparate, que não era por rezar que alguma coisa mudaria, mas a verdade é que a opressão no peito foi diminuindo à medida que pelo fervor se ia entregando ao destino.