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Quando achou que chegava, ergueu-se e sentou-se na cama. Respirou fundo e verificou que se sentia mais aliviado. Era irónico como ele, que sempre se achara uma mente progressista, havia recorrido a um expediente que considerava tão primário para aplacar a ansiedade. Mas o facto é que resultara e já conseguia respirar melhor. Era como se se tivesse entregue a alguém superior, como um filho se agarra ao pai no instante em que mais teme o mundo. Se nada podia fazer, porque não acreditar que uma entidade metafísica se apiedaria dele, porque não confortar-se com a ideia de que algo maior o protegeria? O que tinha ele a perder? Podia ser uma tolice, era-o provavelmente, mas não havia dúvidas de que rezar o fazia sentir-se melhor.

Com o coração mais leve e a mente mais límpida, pôs-se a pensar no seu caso. Tinha vinte e quatro horas para dar uma resposta. O que iria ele dizer quando o abutre da PVDE lhe entrasse na cela e lhe anunciasse que chegara a hora de decidir? Tornar-se-ia um informador da polícia de vigilância ou deixaria que o condenassem por um assassínio que não cometera?

Encarou as duas opções, mediu as consequências de cada uma delas e suspirou vezes sem conta.

Não ia ser nada fácil.

A noite caiu e pensou em Amélia e em Joana. Será que elas sabiam o que se passava? A mulher estaria sem dúvida nervosa.

Prometera que lhe enviaria um telegrama logo que saísse da sede da PVDE, para que Joana descansasse, mas, como era evidente, não o pudera fazer. Será que ela já tinha tomado alguma medida? Teria ido falar com o juiz? Teria mandado algum telegrama a Amélia? E isso adiantaria alguma coisa? Poderia alguém importar-se com a detenção de um veterinário de Trás-os-Montes?

Não estaria ele perdido para o mundo?

Mergulhado na escuridão da cela, depois de se levantar e sentar sucessivamente, ao fim de inúmeras voltas pelo cubículo, após deitar-se e constatar que era impossível dormir, dei-xou-se ficar sentado longamente na cama até conseguir verbalizar a velha ideia que o assombrava nos momentos difíceis.

"Viver é sofrer."

Seria capaz?

XVI

O atormentado e tardio sono de Luís foi perturbado pelo clang-clang metálico de uma chave a rodar na fechadura. Sonhava nessa altura que a polícia o apanhava em flagrante a partir o pescoço do caseiro de Castelo de Paiva, e os sons da chave na fechadura misturaram-se com o sonho e tornaram-se os sons da coluna do homem a estalar. Mas o chiar da porta da cela a abrir-se rompeu a fantasia do sono e o veterinário viu-se de repente transportado para a realidade.

Fui preso!, foi a primeira coisa que lhe veio à mente ao abrir os olhos. Levantou a cabeça e, subitamente muito desperto, deparou-se com a silhueta pequena e seca do inspector da PVDE a encará-lo.

"Então?", perguntou Aniceto Silva com uma expressão jovial. "Dormiu bem?"

O recluso afastou o cobertor imundo e sentou-se na cama, mas não respondeu.

"Não me diga que a noite não foi agradável", insistiu o polícia em tom jocoso. Fez um gesto a indicar o apertado cubículo. "Aqui o Savoy não estava do seu agrado?"

Sem vontade de dar troco aos gracejos, Luís esfregou os olhos e bocejou, simulando não ter ficado afectado com aquela noite nos calabouços.

"Quando é que esta palhaçada vai terminar?"

"Só o cavalheiro é que pode responder a essa pergunta", devolveu o polícia. "Eu, cá por mim, terminava isto já neste momento."

O inspector colocou-se diante do recluso com as pernas abertas, à maneira de um forcado diante do touro. Luís sentiu que aquela postura o inferiorizava ainda mais e levantou-se, tirando partido do facto de ser mais alto que o seu carcereiro para tentar reequilibrar a relação de forças que insidiosamente se estabelecia.

"O senhor sabe muito bem que eu não matei ninguém", disse, olhando-o agora de cima para baixo.

"Não vamos recomeçar com a mesma conversa, pois não?", retorquiu Aniceto Silva, cruzando os braços num gesto de fastio. "Acho que a esse respeito as coisas ficaram muito claras entre nós, não ficaram? Ou o cavalheiro ainda tem dúvidas?"

Luís manteve por momentos o olhar fixo no inspector, mas acabou por abanar a cabeça.

"Não. Já não tenho dúvidas nenhumas."

Os lábios do homem da PVDE desenharam o esboço de um sorriso vitorioso.

"Folgo em sabê-lo." O rosto descontraiu-se-lhe ligeiramente. "Há quanto tempo o cavalheiro não come?"

A pergunta surpreendeu o recluso.

"Desde o almoço de ontem."

"Quer tomar alguma coisa?"

Luís hesitou, na dúvida sobre se a pergunta era a sério ou se havia algo por detrás dela. Decidiu que não tinha nada a perder; o pior que lhe podia acontecer era continuar sem comer. Era verdade que toda aquela situação lhe tirara o apetite, mas sabia que precisava de se alimentar; o jejum prolongado poderia deixá-lo demasiado frágil.

"Um café com leite e um pão com carne eram capazes de cair bem", sugeriu.

O inspector voltou-se para o guarda que vigiava a cena no corredor, do outro lado das grades.

"O coiso, traga aqui um galão e um prego para o cavalheiro."

O hábito de Aniceto Silva em referir-se a Luís como o "cavalheiro" havia muito que lhe mexia com os nervos. O polícia pronunciava a palavra com acinte, transformando-a quase em coisa de escárnio, mas nunca lhe parecera tão insultuosa como naquele momento. Apeteceu-lhe devolver a expressão no mesmo tom, com a mesma bílis ácida com que ela lhe chegava, mas conteve-se; sabia que nada ganharia com isso e achou que o melhor era manter a cabeça fria.

Preferiu, por isso, concentrar-se nas preocupações mais mundanas, e as mais imediatas eram as referentes a Joana e a Amélia.

"Já alertaram a minha mulher?"

"Para quê?"

"Enfim, para que ela saiba da minha... da minha situação."

"Acha mesmo que ela precisa de saber?"

"Bem, se eu não disser nada ela há-de com certeza ficar ralada."

"E se disser também ficará ralada, não lhe parece?"

Luís considerou a observação.

"Lá isso é verdade", admitiu. "Mas ela estava à espera que eu lhe mandasse um telegrama depois da nossa reunião a dizer que estava tudo bem. Como não mandei..."

"A ralação da sua mulher é a última das minhas preocupações", sentenciou o inspector. "Aliás, ela estar ou não ralada depende de si, não de mim. Se o cavalheiro se mostrar cooperante, a sua senhora nem sequer saberá que o cavalheiro pernoitou aqui no Savoy."

O guarda de serviço aos calabouços apareceu com uma bandeja a sustentar um copo longo de café com leite e um pratinho com uma sanduíche de carne. Abriu a porta da cela e, após uma curta hesitação, lá concluiu que não era moço de recados do recluso e pousou a bandeja no chão, junto à entrada, e saiu de imediato.

Com a boca subitamente a salivar, Luís foi à porta recolher o galão e o prego e começou logo a comer. Deu consigo a arfar e a emitir grunhidos; nunca imaginara que pudesse ter fome e muito menos que ela fosse tão grande.

"O cavalheiro estava mesmo com larica", observou o homem da PVDE com satisfação.

"Hmpf."

O detido mal conseguia responder, tão cheia tinha a boca. Achou o prego delicioso e apercebeu-se de que, se calhar, era muito pouca comida para tanto e tão inesperado apetite.

O inspector deu uma volta à cela, como se quisesse apreciar a comodidade do local, embora estivesse na verdade a respeitar uma pausa para deixar Luís comer. A certa altura imobilizou-se de novo diante do recluso, que se sentara na borda da cama a devorar o último pedaço do prego.

"Bem, preciso de saber qual a sua resposta", disse, subitamente impaciente. "Vai ou não cooperar connosco?"

Luís mastigava ainda e fez um sinal para a boca, mostran-do-a a mastigar.