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"Hmpf", foi tudo o que voltou a conseguir dizer.

Era evidente que não chegara ainda o momento de extrair do preso o que dele queria. Aniceto Silva aguardou mais um minuto, os olhos cravados no recluso, desviando-se apenas para consultar a progressão do ponteiro dos segundos no mostrador do relógio.

"O seu tempo esgotou-se", anunciou ao ver o ponteiro perfazer um minuto. "Como é? Vai ou não colaborar no nosso trabalho?"

O veterinário bebeu um trago de leite com café.

"Oiça, eu não estou ainda em condições de responder", disse, tentando ganhar tempo. "O que o senhor me está a pedir é algo que violenta a minha consciência. Se eu realmente tivesse morto o caseiro, era uma coisa. Mas eu não matei ninguém. Por que razão estou a ser vítima de chantagem desta forma?"

"O cavalheiro não me deu uma resposta clara."

"Nem posso dar. Como lhe expliquei, preciso de tempo para amadurecer esta questão e para..."

"Acabou-se o tempo!", berrou repentinamente o inspector. "Sim ou não?"

Apanhado de surpresa pela súbita mudança de tom do polícia, Luís estremeceu de susto e sentiu-se paralisar; não estava realmente preparado para dizer não, mas também não conseguia responder sim. As consequências de qualquer das respostas eram demasiado terríveis para serem contempladas e precisava de ganhar tempo para tentar ver se haveria uma qualquer outra solução.

"Eu... eu não consigo dar-lhe a resposta neste momento. É demasiado..."

O homem da PVDE agarrou-o bruscamente pelos colarinhos e puxou-o para si. Aniceto Silva não passava de um homem pequeno e franzino, mas Luís apercebeu-se de que o tamanho era enganador e de que a minúscula figura escondia um poderoso dínamo de energia.

"O cavalheiro está a dizer-me que não."

"Não, eu não disse isso. Repito..."

O polícia nem o deixou terminar a frase. Com um movimento rápido do braço, esmurrou Luís no fígado. O veterinário dobrou-se em dois, uma dor lancinante a nascer-lhe no estômago, o ar a fugir-lhe dos pulmões, um gemido surdo a rasgar-lhe a garganta. O inspector deu-lhe mais um soco e outro, sempre no fígado. Luís sentiu as entranhas em ebulição e uma erupção ácida bloqueou-lhe a respiração. Foi como se todo o corpo se tivesse comprimido, os músculos contraindo-se e os movimentos tolhidos.

"Agh..."

Levou uns instantes a perceber o que lhe sucedera. Quando abriu os olhos viu a massa disforme acastanhada da carne e do galão misturados num vómito ácido que alagava o chão diante da sua boca. Estava encolhido em posição fetal no chão e escutou passos a afastarem-se.

Ainda sem conseguir falar, virou a cara e, de uma forma nebulosa e desfocada, viu a parte de trás dos sapatos impecavelmente engraxados do inspector a afastarem-se em direcção à porta da cela. Os sapatos pararam e os bicos ficaram de perfil, como se o inspector da PVDE se tivesse voltado para trás.

"O cavalheiro tem até ao meio-dia para dizer que sim", disse a voz de Aniceto Silva. "Se não o fizer, a declaração do senhor Francisco Rodrigues dará a essa hora entrada no Ministério Público."

O clang-clang da chave na fechadura voltou a soar. A porta abriu-se e os sapatos desapareceram atrás do som das passadas que ia morrendo enquanto o inspector abandonava os calabouços. A porta fechou-se com estrondo e um profundo e medonho silêncio instalou-se na cela. Apenas ouvia agora o farfalhar trôpego da sua respiração.

Com um gosto azedo a incendiar-lhe a boca e o odor acre do vomitado a invadir-lhe as narinas, Luís ergueu-se a custo e, com um longo gemido de dor, cambaleou de regresso à cama. Sentou-se pesadamente e tapou os olhos com as mãos, consciente de que o seu destino estava selado. Sabia que jamais aceitaria transformar-se num bufo e isso tinha um preço: faria dele o assassino do caseiro de Castelo de Paiva.

XVII

Chegou a Penafiel numa tarde tépida e lânguida, quando a penumbra do crepúsculo despontava já no horizonte e o derradeiro fulgor laranja do Sol se derramava em reflexos pelo ventre exposto das nuvens pálidas que deslizavam pachorrentas sobre o vale. Fechado na carrinha celular, Luís ouvia o ronco dos motores misturar-se com o clip-clop nervoso dos cascos dos cavalos e com o mugido calaceiro dos bois. Sentia-se um cego a tactear o caminho às escuras; não via um palmo, ouvia a vida a animar-se em redor e tudo tentava reconstituir pelos sons. Mas, apesar de todos os barulhos e do balouçar constante da viatura quando virava para esquerda ou para a direita, o facto é que não conseguia perceber em que ponto da cidade se encontrava.

A carrinha imobilizou-se com um solavanco e um suspiro, o motor estrebuchou e morreu e, após um súbito silêncio retemperador, escutou vozes e passos. A porta abriu-se e a luz invadiu o cubículo, revelando um guarda com o boné torto e

a farda engelhada a esperá-lo lá fora. O guarda fez-lhe sinal com a cabeça de que descesse.

"Anda, malandro!"

Girou a cabeça logo que pousou o pé cá fora. A sua frente estava o Palacete do Barão do Calvário, onde se encontrava instalado o Tribunal Judicial, o local onde o padrinho da mulher trabalhava; do outro lado estendia-se o belo jardim da Praça da República com a magnífica vista para o vale. Fora ali que pedira Joana em casamento.

"Julgas que estás em passeio ou quê?", perguntou o guarda com maus modos, puxando-o em direcção ao palacete. "Mexe-te!"

Foi aos tropeções que Luís se viu empurrado para o interior do edifício do tribunal. Arrastaram-no para o rés-do-chão, onde havia sido estabelecida a cadeia municipal, e acabou por ser encerrado numa pequena cela; não o sabia nem jamais poderia saber, mas tinha sido justamente naquele mesmo espaço que, semanas antes, Francisco havia ditado à PVDE a declaração que transformara Luís num assassino.

O novo hóspede da cadeia municipal de Penafiel estava, porém, por esta altura para lá de preocupações sobre quem fizera o quê, quem dissera o que mais e como demonstrar o que era supostamente necessário provar. Sabia-se inocente; o problema é que tinha plena consciência de que isso de nada importava naquelas circunstâncias. Se estava preso não era porque tivesse matado ou deixado de matar outro homem, mas porque se recusara a colaborar na vigilância de um terceiro.

Ou, se calhar, nem sequer era por isso; talvez estivesse ali simplesmente porque alguém implicara com ele, porque um dia tinha estado no sítio errado à hora errada e dito algo de errado à pessoa errada. Tão simples quanto isso.

Mas nesta altura já nada importava. Fosse por isto ou por aquilo, a verdade é que fora para ali atirado e tudo o resto lhe parecia agora irrelevante.

"Psst", chamou uma voz.

Olhou e viu outro recluso fazer-lhe um sinal na cela ao lado.

"Hmm?"

"Porque te botaram aqui? O que fizeste?"

Luís encarou o outro e ainda pensou em responder. Mas logo um cansaço imenso o assaltou e fez mudar de ideias. Encolheu-se no seu canto e deixou-se ali ficar, como se aquela esquina fosse um refúgio, o amparo da agressão de um mundo hostil.

Desde que havia sido detido em Lisboa que mergulhara numa depressão, mas ali, em Penafiel, a angústia parecia ainda maior. Viviam naquela cidade pessoas que conhecia e respeitava; sobretudo estava ali Amélia, a única mulher que verdadeiramente amava. E agora encontrava-se ele naquela prisão, indefeso, alvo de suspeita, sujeito à vergonha, objecto de humilhação. Como poderia dali em diante encarar todas aquelas pessoas? Como iriam elas olhá-lo? Como conseguiria sobreviver a tudo aquilo? Amélia sabia-o inocente, é certo, mas não iria isso apenas incendiar o seu tormento? Se saber que uma pessoa amada fora presa por um crime que cometeu era terrível, que dizer do desespero de saber que uma pessoa amada estava a ser gravemente punida por algo que não fizera e não poder resgatá-la desse tormento?