A noite caiu e a sombra abateu-se sobre a cela. No afogo dos intermitentes ataques de ansiedade, Luís não conseguia permanecer quieto. Quando a aflição o assolava, saltava do seu canto e dava voltas e voltas ao compartimento. Por vezes empoleirava-se no tosco banco de madeira que lhe haviam deixado ali e espreitava o exterior pelas grades altas que selavam a janelinha no topo da parede. Estava escuro e, de mãos agarradas às barras frias e face colada ao metal enferrujado, apenas vislumbrava silhuetas coladas aos passeios, vultos fantasmagóricos que gotejavam intermitentemente pelas ruas sombrias.
A exaltação da ansiedade sucedia-se a letargia da depressão. Que fazer? Como sair daquela situação? Que seria dele? Voltava ao seu canto e esperava pelo novo assalto de medo descontrolado. Percebeu que não conseguiria adormecer e passou a noite inteira sem pregar olho, alternando entre estados de espírito opostos, ora agitado pela ansiedade, ora entorpecido pela depressão.
Recebeu visitas no dia seguinte. A primeira a ir vê-lo à cadeia municipal foi, como parecia inevitável, Joana. Não se tratava na verdade de quem Luís mais desejava ver naquele momento, ansiava antes pelo conforto de Amélia, mas Joana era a sua mulher e isso conferia-lhe direitos inalienáveis.
"Diz-me a verdade", atirou-lhe Joana mal se sentou diante dele, as órbitas vermelhas de aflição. "Foste tu que mataste o Tino?"
Luís inclinou a cabeça, agastado.
"O que achas tu?"
Os olhos da mulher saltitaram de um ponto para o outro, como se buscassem uma resposta num qualquer canto da salinha.
"Eu... eu não sei", titubeou. "Isto é tão incrível, tão... tão... não sei o que pensar."
"Claro que não matei o homem."
"Mas eles dizem que tu... que tu quiseste dar-te a... a liberdades com a Amélia."
"E o que diz ela?"
"Que é mentira."
Luís tinha consciência de que essa era a única resposta que Amélia poderia dar, mas saber que ela o tinha de facto dito de algum modo confortou-o.
"Claro que é mentira."
"Então por que razão te acusam eles de uma coisa destas, valha-me Deus?" Todo o corpo dela se contorcia num ponto de interrogação. "Porquê? Porquê?"
A pergunta quase arrancou dele a verdade, mas conteve-se. Havia que ter cuidado. O que deveria ele dizer sobre o assunto? Que a PVDE o pusera nas mãos do Ministério Público porque ele não aceitara espiar um amigo de Vinhais? Assim postas as coisas, a explicação parecia forçada e o castigo desproporcionado. Além do mais, era uma coisa perigosa de se dizer. Se desse essa explicação, talvez pusesse as outras pessoas em perigo. Ou talvez não.
Na verdade, não sabia o que dizer. Depois de pensar longamente no assunto, concluíra já que a verdadeira causa era provavelmente outra. Achava que na origem da sua situação estava uma mera sucessão de azares, uma troca de palavras azeda que não deveria ter ocorrido numa noite de Lisboa, uma morte que se poderia ter evitado, uma detenção que nunca deveria ter acontecido, uma falsidade que jamais poderia ter sido dita.
Fosse como fosse, pareceu-lhe mais prudente ter cuidado com o que afirmava.
"Não sei, Joana", disse. "Parece que foi o que o Chico declarou quando o prenderam."
"Mas como pode ele ter dito tal coisa?"
"Não faço ideia. Vocês é que o conhecem..."
A mulher abanou a cabeça, sabendo que não era impossível Francisco ter feito falsas declarações. Embora não tivesse convivido muito com ele, ou talvez justamente por causa disso, a verdade é que sempre achara o irmão adoptivo uma pessoa estranha. Os acontecimentos dos últimos dias pareciam confirmá-lo de uma forma sinistra.
"Onde está ele?", perguntou ela, como se tivesse acabado de ter uma ideia.
"Quem? O teu irmão? Para que queres saber?"
"Ora, para falar com ele! Ele tem de contar a verdade!"
"O tipo está-se bem ralando para a verdade. O que ele quis foi escapar, mais nada."
"Não importa, temos de falar com ele. Onde está o Chico?"
"Sei lá", devolveu Luís com um encolher de ombros. "Libertaram-no e ele desapareceu.
Suspeito que só lhe vamos pôr os olhos em cima no dia do julgamento. Ou se calhar nem aí. Parece que lhe escreveram um depoimento e ele assinou de cruz..."
Joana apertou as mãos do marido, de repente afogueada.
"Ai, Virgem Maria! O que vai ser de nós?"
Luís não sabia o que responder. Na verdade, era ele quem mais precisava de orientação e conforto, e não dispunha de energia para dar; não podia oferecer à mulher o que ele próprio não possuía dentro de si.
"O doutor Garcia?", quis saber, perguntando pelo advogado de Vinhais. "Ele vem aí?"
"Chega amanhã", afirmou ela.
O olhar animou-se-lhe, como se um lampejo de esperança refulgisse dentro de si.
"E... e já viu o processo?"
"Sim."
"O que diz ele?"
Joana hesitou o suficiente para Luís perceber que as notícias não eram boas.
"Diz que vai ver o que se pode fazer."
"Mas o que acha ele do caso?"
"Acha que... enfim, vai tentar ajudar-te."
O recluso estreitou as pálpebras e endureceu as mandíbulas, fitando-a como se lhe quisesse desnudar a alma.
"Diz-me a verdade, Joana. Que te disse ele?"
A mulher baixou os olhos, o queixo começou a tremer-lhe e uma lágrima teimosa deslizou-lhe pelo rosto.
"Disse que o caso é complicado." Fungou. "E o meu padrinho concorda."
"Quem? O juiz Brandão?"
"Sim. Pedi-lhe que te ajudasse, mas ele disse que não pode fazer nada."
"O teu padrinho e o doutor Garcia acham que vou ser condenado?"
Joana assentiu com a cabeça, incapaz de fitar o marido.
"Quantos anos?"
Ela manteve os olhos fixos na mesa, como se não fosse capaz de responder.
"Quantos anos?", insistiu ele.
Luís estava determinado a enfrentar a realidade, temendo-a em absoluto mas desejando-a com morbidez. Era como se a verdade fosse um magneto com dois pólos; queria fugir dela mas corria para ela.
"O doutor Garcia disse que é preciso ter esperança. Ele disse que vai fazer tudo por tudo."
"Não foi isso o que eu perguntei. Qual é a estimativa que o doutor Garcia e o teu padrinho fazem em caso de eu ser condenado? Quantos anos poderei ter de passar na cadeia?"
Joana fez um esforço para falar, mas falhou a primeira tentativa. Foi só ao fim de alguns segundos que a voz fina e trémula logrou responder à terrível pergunta.
"Vinte", sussurrou ela. "O quê?"
Perdida e incapaz de se conter mais, a mulher desfez-se num pranto de desgosto. "Pelo menos vinte anos."
XVIII
Os minutos naquela cela húmida pareciam decorrer a contagotas. O monótono pingar metálico de um cano mal atarraxado no tecto era complementado pelo zumbido enervante das varejeiras que não largavam os baldes com dejectos, como se um violino mal afinado miasse de improviso em resposta à teimosa batida de uma tecla encravada no piano. Aqui e ali erguia-se o lamento triste de um outro recluso ou uma ordem ladrada pelo carcereiro; pareciam tenores em dueto a dar um toque humano àquela desconchavada melodia.
Mas Luís permanecia alheio aos sons e fedores que flutuavam avulsos pelas paredes do cárcere, mergulhado que estava num longo torpor depressivo, o olhar perdido na visão desfocada das grades, a respiração pausada e indolente, a vontade a esvair-se num sopro. Tenho de encontrar uma solução para isto, pensava obsessivamente. Não aguento esta situação muito tempo. Isto é intolerável.