Nas vinte e quatro horas que se seguiram à sua chegada à cadeia municipal de Penafiel só escapou da letargia e despertou para a vida durante as breves visitas que foi recebendo. Depois de Joana foi a vez de o casal Branco o ir ver, mas o encontro revelou-se embaraçoso, talvez por causa da humilhação que aquela situação representava para todos, mas mais provavelmente em virtude de a acusação arrastar o nome de Amélia para o centro da confusão.
"Quero dizer-lhe que sei que a acusação que lhe estão a fazer é absolutamente infundada", declarou o capitão Branco depois do silêncio desconfortável que se seguiu às primeiras palavras de circunstância. "É uma infâmia e espero que a verdade venha ao de cima."
"Obrigado, meu capitão."
O oficial continuou no mesmo tom de quem diz o que lhe parece correcto nas circunstâncias.
"A Amélia confirmou-me que aquilo que o Chico declarou é falso." Branco olhou para a mulher, como se buscasse confirmação. "Não é, querida?"
Amélia fitava Luís com uma expressão indefinida, perdida entre o choque e a incredulidade com o evoluir dos acontecimentos, estarrecida com o rosto inesperadamente chupado que encontrara à sua frente. Ao sentir-se interpelada, estremeceu, como se despertasse, e fez um movimento mecânico com a cabeça.
"Sim, claro."
"De modo que não vejo com que base lhe fizeram esta acusação", retomou o capitão, com a convicção de quem quer acreditar no que está a dizer. "E ridículo."
A vontade de Luís era que o capitão desaparecesse dali naquele instante, se sumisse quanto antes e o deixasse a sós com Amélia. Mal ouvia o que o seu antigo superior hierárquico no exército lhe dizia. Escutava aquela voz familiar mencionar qualquer coisa sobre o processo e as acusações e o absurdo de tudo aquilo, mas apenas se esforçava por fingir que seguia o que era dito. Quando o tom das palavras do capitão o requeria, ia fazendo que sim com a cabeça e murmurava o seu assentimento.
"Hmm-hmm."
Não acompanhava, porém, o sentido das palavras. Limitava-se a mirar o capitão como um sonâmbulo, vendo-o a movimentar a boca como um peixe dentro de água. Voltava a assentir sempre que notava uma pausa e, à primeira oportunidade, desviava a atenção para Amélia, que não lhe largava os olhos. Comunicavam em silêncio naquelas breves trocas de olhares, as palavras transformadas em sentimentos, as expressões em carícias.
Cinco minutos.
Aquilo por que Luís mais ansiava naquele momento era por permanecer a sós com Amélia durante cinco minutos. Transformaria aquele instante numa eternidade, entregar-selhe-ia com toda a alma, libertaria de vez a paixão que lhe agrilhoava o peito. Mas a realidade foi-se impondo gradualmente, à medida que as palavras do capitão deixavam de ser um amontoado indefinido de movimentos de boca e se tornavam novamente audíveis.
Luís tomou a pouco e pouco consciência de que estava entregue a si mesmo e de que o único conforto que alguma vez poderia receber era a compaixão que, como lágrimas quentes, Amélia derramava em silêncio pelos seus olhos tristes.
Como prometido por Joana, o doutor Garcia compareceu no dia seguinte ao da transferência do recluso para Penafiel. O advogado veio com uma aparência jovial, procurando
transmitir uma corrente de optimismo e energia positiva, mas, nas entrelinhas da exposição sobre a situação do processo e o ambiente em torno dele, Luís confirmou que a posição em que se encontrava era de grande delicadeza.
"Oiça, doutor Afonso", afirmou o doutor Garcia no final da sua exposição. "Como advogado tenho o dever de manter confidencialidade sobre tudo o que o senhor me disser."
Deixou a frase suspensa, como se houvesse nela um sentido subliminar, mas Luís devolveu-lhe o olhar com uma expressão vazia, não entendendo onde queria ele chegar.
"Sim?..."
O advogado remexeu-se na cadeira e inclinou-se na direcção do cliente, na postura de quem quer sublinhar o que tem para dizer.
"O que eu estou a tentar explicar-lhe é que o senhor, a mim, pode dizer a verdade", murmurou, como se tivesse medo de que alguém estivesse à escuta. "Entende?"
"Mas eu estou a dizer-lhe a verdade."
"Portanto, o senhor não matou o caseiro..."
"Já lhe disse que não. Foi o Chico."
"E tem maneira de o provar?"
"Provar como?"
"Sei lá, existe alguma testemunha?"
Luís hesitou. Havia Amélia, claro. Ela havia assistido a tudo e seria decisiva. Mas não, pensou. Acontecesse o que acontecesse, não podia arrastá-la para aquilo. Se a pusesse a depor, não tinha a menor dúvida de que a PVDE arranjaria maneira de inserir no processo a informação de que Amélia era sua amante. De uma assentada, colaria a Luís um móbil plausível para o crime e mancharia irremediavelmente a reputação de Amélia enquanto mulher honrada. Isso ele não podia consentir de modo algum.
"Não."
Mas o advogado era experiente e havia detectado a hesitação.
"O senhor doutor não me está a contar tudo..."
"Quero lá saber", respondeu com abandono, quase como se nada daquilo lhe interessasse.
O doutor Garcia respirou fundo, endireitou-se na cadeira e coçou a cabeça.
"O doutor Afonso, veja lá se entende isto", disse, a voz carregada de paciência. "A sua situação é de extrema gravidade." Folheou umas páginas dactilografadas que havia tirado da malinha e pousara sobre as pernas. "É verdade que existe apenas um depoimento contra si, esta declaração desse senhor Francisco. Em circunstâncias normais seria a palavra de um contra a palavra do outro e é muito possível que o tribunal não chegasse a conclusão alguma. No entanto, e por algum motivo que eu não estou a descortinar, as autoridades estão a conferir a esse senhor grande credibilidade. É provável que isso tenha a ver com o envolvimento da pevide neste caso, o que me parece tremendamente preocupante, como deve calcular." Voltou a acariciar as folhas. "Assim sendo, com base neste depoimento acusatório desse senhor Francisco, não tenho dúvidas de que, considerando o dedo da pevide neste processo e o ambiente criado em torno de si, o senhor será condenado a muitos anos de cadeia por homicídio. Está a perceber o que lhe estou a dizer?"
Luís assentiu com a cabeça, mas não emitiu um único som.
"Se há alguma coisa ou alguma testemunha que possa provar a sua inocência, então é melhor que ela apareça já. O silêncio que o senhor doutor adoptou, seja por que motivo for, é muito perigoso. Se o senhor doutor não cometeu o crime, não há nada que queira proteger que justifique passar
vinte anos na cadeia. Vinte anos de cadeia é uma vida inteira, compreendeu?"
Novo assentimento silencioso.
"Nada justifica tal sacrifício", repetiu o advogado para sublinhar a ideia. "Daí que eu formule novamente a pergunta: há ou não uma testemunha que o possa ilibar?"
A mente de Luís estava mergulhada num terrível dilema. Amélia poderia resgatá-lo. Mas a que preço?
"Não", respondeu, procurando imprimir firmeza à sua voz, mas receando ao mesmo tempo estar a cometer um terrível erro.
O doutor Garcia tomou consciência de que assim não iria lá. Havia ali alguma coisa que o seu cliente não lhe estava a revelar, percebeu. Para a arrancar, talvez fosse melhor mudar de táctica e confrontá-lo de uma forma diferente.
"A sua mulher não assistiu a nada?" Tocou mais uma vez nas folhas do processo. "Diz aqui que naquele dia ela também se encontrava na quinta de Castelo de Paiva..."
"Não, a Joana não viu nada."
"E a sua cunhada, a dona Amélia?"