"Também não."
"A dona Amélia negou que o senhor se tivesse dado a liberdades com ela." Esfregou a palma da mão no queixo. "O depoimento que ela vai fazer poderá ser uma grande ajuda."
"Nem pensar."
O advogado arregalou os olhos, sem entender.
"Como? Acha que o testemunho dela não será favorável?"
"Não é isso", corrigiu Luís. "Não quero que a Amélia preste qualquer depoimento."
"O quê?"
"É isso mesmo o que o senhor ouviu. Ela que nem ponha os pés no tribunal."
"Mas... porquê?"
"Porque não quero."
O doutor Garcia agitou a cabeça, como se tentasse expulsar algo que o impedia de ouvir bem.
"Peço desculpa, mas isso não faz nenhum sentido. A dona Amélia é referida no depoimento do senhor Francisco como estando na origem de tudo." Apontou para os papéis do processo que mantinha amontoados sobre as pernas. "Diz aqui que o senhor doutor tentou dar-se a liberdades com a dona Amélia e o caseiro apareceu em defesa da senhora. O senhor Francisco alega que foi por isso que o senhor doutor matou o caseiro. Mas, se a dona Amélia declarar que o senhor doutor não tentou dar-se a liberdades com ela, isso põe em causa o depoimento acusatório."
O raciocínio era sólido, mas Luís temia o que viesse a acontecer se Amélia testemunhasse no processo. O inspector Aniceto Silva havia sido muito claro na insinuação que fizera: se Luís queria manter secreta a sua relação amorosa com Amélia, não a podia pôr a testemunhar. Era tão simples quanto isso.
"Eu entendo o que está a dizer-me", afirmou o recluso. "Mas não quero a Amélia envolvida neste processo."
"Desculpe, mas envolvida já ela está."
"Deixa de estar."
"Deixa de estar, como? O nome da dona Amélia é mencionado no depoimento do senhor Francisco..."
"Isso torna obrigatório que ela testemunhe em tribunal?"
"Parece-me evidente."
"Ela é obrigada a testemunhar, mesmo que nós não a convoquemos?"
O advogado hesitou, desconcertado com tal cenário.
"Bem... quer dizer, para que ela testemunhe é preciso que alguém a convoque, claro. A acusação não o vai fazer, como
é evidente, uma vez que não me parece que ganhe alguma coisa com isso. Teremos de ser nós a chamá-la."
"Então se não a convocarmos ela não irá testemunhar, não é verdade?"
"Enfim... sim. Ela só irá testemunhar se a convocarmos."
"Então não a convocamos."
"Mas isso seria uma loucura", exclamou o doutor Garcia, quase revoltado com a sugestão. "Ela é a única arma que temos para montar a defesa."
"Teremos de prescindir dela."
"Como?"
"O doutor Garcia, deixe-me tornar isto muito claro", afirmou Luís, fitando o advogado nos olhos com a intensidade de quem não admite ser contrariado. "Por motivos que não lhe posso explicar, a Amélia não irá sentar-se no banco das testemunhas. Não aceitarei isso e o senhor fará o favor de não a chamar a depor."
O advogado fitava-o boquiaberto.
"O senhor tem a certeza do que está a fazer?"
"Posso não ter a certeza de muitas coisas, mas neste ponto a minha certeza é absoluta.
Custe o que custar, a Amélia não pode ser envolvida no processo."
"Mas... explique-me só porquê. Gostaria de entender."
O recluso considerou a possibilidade de abrir o jogo. Sentia-se tremendamente solitário e precisava de alguém com quem desabafar. Poderia dizer ao advogado que tudo aquilo se devia a ele próprio, doutor Garcia, que a PVDE o queria espiar, que Fernando era um bufo e que ele, Luís, estava a ser punido por se recusar a assumir também esse papel.
Mas talvez a verdade nem fosse bem essa. De novo pensou que, no fundo, estava era a ser objecto de um ajuste de contas mesquinho, pelo que não era justo reduzir toda aquela situação
à sua recusa em tornar-se um informador. Por outro lado, concluiu mais uma vez que talvez fosse melhor ser prudente. Revelar a verdade, qualquer verdade, de nada adiantaria naquele momento.
Pior, o inspector Aniceto Silva ficaria furioso e, se não tivesse cuidado, retaliaria onde lhe doeria mais, expondo Amélia da pior forma possível. Desse por onde desse, Luís jamais aceitaria deixá-la naquela posição. Se alguém tinha de ser sacrificado, estava disposto a ser ele. Ela, nunca.
"Os motivos são meus", insistiu. "E a decisão também. A Amélia não pode ser chamada a depor."
"Então como quer o senhor doutor que eu monte a defesa?"
"O advogado é o senhor."
O doutor Garcia deixou a cabeça descair para trás e fitou o tecto da cela, suspirando com desânimo. Mas logo voltou a endireitar-se, ganhando balanço para tentar enfrentar positivamente a situação; tinha consciência de que não podia ser ele a desistir. O veterinário lá sabia o que estava a fazer, pensou. Se queria prescindir daquela testemunha crucial por motivos que não tencionava partilhar, que poderia ele fazer? Parecia--lhe uma loucura, mas, enfim, o cliente é que mandava.
"O senhor doutor tem a noção do que se encontra neste caminho que está a trilhar, não tem?"
"Elucide-me."
O advogado ajeitou a gravata e fungou, como se se estivesse já a preparar para o inevitável.
"O desastre, senhor doutor. O desastre."
XIX
Um sopro de aragem traçava um rasto cintilante no pó que flutuava à meia-luz da manhã, como se mil grãos de ouro faiscassem pelo ar. Submerso no seu mutismo deprimido, interrogando-se mil vezes sobre como sair daquela situação impossível, os ouvidos de Luís registaram o som dos passos no corredor a sobreporem-se ao interminável lacrimejar do cano do tecto, mas nem prestou atenção; a sua mente parecia fechada aos rumores que lhe chegavam do exterior.
"O Afonso", chamou uma voz. "Tens mais uma visita."
O preso levantou o olhar velado e encarou interrogativamente o carcereiro, como se lhe perguntasse porque o incomodava. Mas o homem estava concentrado na chave e na fechadura que tentava abrir, pelo que Luís teve de encontrar a resposta por si mesmo. Devia ser Joana, pensou. Era ainda muito cedo, mas se calhar dera-lhe para madrugar.
O carcereiro deixou-o sair da cela e levou-o até à sala das visitas. Quando a porta se abriu, Luís sentiu um baque ao
perceber quem estava ali para o ver. Era Amélia. Procurou em redor, em busca do marido, mas não o viu.
"Olá, Luís", murmurou ela, a voz doce e meiga.
Prenderam o olhar um no outro e ela pareceu-lhe incrivelmente bela. Vinha com um vestido azul aos folhos brancos, um fio púrpura em torno do pescoço alto, o cabelo solto sobre os ombros, os olhos banhados por uma liquidez melancólica.
"Olá, Amélia. Vieste sozinha?"
"Preciso de falar contigo."
Que bom, quase exclamou.
"Eu também."
O recluso sentou-se diante daquela criatura esplendorosa e quase sentiu vergonha de" si mesmo.
Como era possível amar uma mulher tão bonita e apresentar-se diante dela assim tão porco, tão miserável, tão desgraçado? Devo cheirar a esterco e a urina, pensou, e além do mais ando magríssimo por causa desta falta de apetite. Encolheu-se de constrangimento com a figura que imaginava projectar.
Talvez intuindo a vergonha que o acossava, Amélia abriu-se num sorriso angelical e pô-lo à vontade. Se cheirava mal, ela parecia não notar; se se achava feio, ela claramente não pensava assim; se a emaciação do cárcere a chocava, ela não dava sinal. Luís acalmou, enfeitiçado pelo olhar dourado que cintilava na penumbra.
"Tenho tantas saudades tuas", disse ele, deslizando a mão pela mesa, as unhas sujas de negrura.
Respondendo ao movimento, Amélia agarrou-lhe a mão trémula e apertou-a com força. Também ela estava agitada, mas vinha quente e macia, e sentir-lhe a pele era como acariciar a pétala aveludada de uma rosa tenra.