"Eu também, meu querido. Eu também."
Ficaram um longo instante de mãos dadas, a fruir o momento, a torná-lo eterno.
"Lembras-te dos passeios até ao liceu?", perguntou Luís, como se a memória da juventude em Bragança o libertasse daquela prisão.
"íamos de minha casa a namoriscar", lembrou ela. "Naquele tempo era tudo tão simples. Meu Deus, como éramos inocentes!"
"Eu gostava de ti, tu gostavas de mim, o futuro era nosso, como poderíamos não ser inocentes?"
Luís mordeu o lábio. "Mas tudo nos foi roubado."
"Não somos nós quem manda no nosso destino, pois não?"
O amante abanou a cabeça com tristeza.
"Pelos vistos, não. Não passamos de marionetas das circunstâncias."
Amélia respirou fundo, como se tentasse ganhar coragem.
"Pois é", disse, o tom tornando-se inesperadamente assertivo. "Mas eu vim aqui para reclamar as rédeas do nosso destino. Não quero continuar a ser uma marioneta."
"O que queres dizer com isso?"
"Quero dizer que chega, não aguento mais! Está na hora de assumirmos o controlo da nossa vida!"
Luís olhou-a com uma ponta de perplexidade, sem perceber exactamente o sentido prático daquelas palavras.
"E como tencionas fazer isso?"
"Contando a verdade."
"Qual verdade?"
"A verdade sobre o que realmente aconteceu em Castelo de Paiva."
"Estás doida?"
"Doida? Doida estarei eu se deixar que esta farsa continue por mais um dia que seja!"
"Mas o que lhes vais contar exactamente?"
"O que aconteceu. Que o Chico partiu o pescoço do Tino à minha frente... à nossa frente."
"E achas que isso chega?"
"Tem de chegar."
Luís apertou-lhe as mãos com mais força.
"Meu amor, eles não se vão ficar por aí. Se disseres que viste o Chico a matar o caseiro, eles vão até às últimas consequências para apurar os motivos por detrás de tudo. Ficar-se-á a saber que o Chico actuou para proteger a tua reputação e que tudo começou porque o caseiro nos apanhou juntos lá no curral a... a... enfim. Estás a perceber o que vai acontecer?"
"Sim", assentiu ela. "-Será terrível."
"É por isso que não podes testemunhar a meu favor, meu amor. Se o fizeres, a verdade virá toda à tona."
"Paciência."
"Paciência?", admirou-se Luís. "Isso será o caos na tua vida! O teu marido ficará a saber de tudo! A tua irmã odiar-te-á! Pior do que tudo, acabarás por ser expulsa de casa e ficarás sem ver os teus filhos! Serás rejeitada por toda a gente! Tens consciência disso?"
Uma grossa lágrima deslizou pelo rosto delicado de Amélia.
"Sim", sussurrou, como se estivesse esmagada pelo futuro já em gestação. "Eu sei."
"Achas-te preparada para isso?"
Amélia soluçou.
"O mais difícil será não poder ver os meus meninos..."
"Irias desgraçar-te, meu amor."
Os soluços tornaram-se um pranto. O ataque de choro impedia Amélia de fechar os olhos. Cruzou os braços sobre o
estômago e dobrou-se sobre si mesma, numa postura de desespero.
"Desgraçada já eu estou!"
Emocionado e transbordante de amor, Luís ergueu-se e abraçou-a, como se tentasse protegê-la da realidade que os cercava.
"Pronto, pronto", murmurou-lhe ao ouvido enquanto lhe afagava os cabelos. Cheiravam a eucalipto. "Tem calma, vai tudo correr bem. Vais ver."
Amélia tremia convulsivamente, como se estivesse gelada, o queixo a tiritar sem controlo, os braços a tremelicar. Luís tentava reconfortá-la como podia, mas a ele próprio faltavam-lhe as palavras, não havia nada que pudesse dizer capaz de ocultar o quão complicada era toda aquela situação. Sabia que não existiam saídas boas para aquele dilema; teriam de escolher entre soluções más e péssimas.
As convulsões prolongaram-se por alguns minutos, até que Amélia recuperou gradualmente a compostura.
"Hoje vou à polícia contar tudo", disse, mal foi capaz de recomeçar a falar.
"Não vais nada, tem calma."
"Tenho de ir."
"Não faças isso", insistiu ele. "Vais-te desgraçar a ti, vais desgraçar a tua irmã, vais desgraçar o teu marido e vais desgraçar os teus filhos. E isso para quê? Para me salvares a mim! A mim, que já estou desgraçado!"
Ela pôs-lhe as mãos quentes no rosto, uma em cada bochecha, apertou-o e aproximou a cara até os narizes estarem quase encostados.
"Ouve, Luís", sussurrou com intensidade. "Não consigo dormir mais uma única noite a pensar que estás na cadeia e só não sais por minha causa. Esta situação não pode continuar."
"E eu não conseguirei dormir tranquilamente mais uma única noite se souber que te desgraçaste para me salvar."
"Mas tu vais ser condenado a vinte anos por um crime que não cometeste! Vinte anos, Luís! Isso não quero, não posso, não vou aceitar!"
"E tu serás condenada até à eternidade por um crime que nem sequer devia ser crime. E
atrás de ti será arrastada toda a tua família. Toda ela. Isso eu também não quero, não posso nem vou aceitar."
Ela permaneceu um longo tempo a fitá-lo.
"És teimoso, hem?"
Luís fez um esforço para sorrir.
"Muito. Sobretudo quando tenho razão. Mais vale eu arriscar vinte anos na cadeia do que tu, os teus filhos, a tua irmã e o teu marido passarem a eternidade no inferno para salvar quem já está para lá da salvação."
"Não digas disparates. Eu não posso consentir que estejas preso, isso está fora de questão."
"Mas terás de consentir."
Os olhos enlaçaram-se e Amélia suspirou, como se estivesse já resignada ao destino.
"Não posso deixar que isto continue por todas as razões que tu conheces e por mais uma que ainda desconheces."
"Estás a falar de quê?"
Ela estendeu a mão para baixo da mesa e levantou a malinha castanha que tinha encostada aos pés. Pousou a malinha no regaço, abriu-a e extraiu um grande envelope branco com um carimbo azul gasto a anunciar "Photo Anthony". Abriu o envelope e retirou o rectângulo rendilhado de uma fotografia.
"Estou a falar disto", disse, estendendo-lhe a imagem.
Luís pegou no rectângulo e pousou os olhos no rosto sorridente e desdentado de um menininho aloirado; posava em trajes domingueiros junto a um vaso e a um cão, e o fundo era difuso. Era uma fotografia de estúdio e provavelmente o cão não passava de um adereço da Photo Anthony, a prestigiada casa de fotografia de Penafiel.
"Quem é?"
"Não lhe reconheces os traços?"
Luís fixou os olhos no sorriso da criança e ergueu-os para o rosto de Amélia, comparando as fisionomias.
"É o teu filho?"
A amante cravou nele os olhos cor de mel com fervor, como se lhe quisesse espreitar o coração.
"É o nosso filho."
Luís abriu a boca e fechou-a sem produzir um único som. Olhou para Amélia e depois para a fotografia e depois para Amélia de novo, atordoado com a novidade.
"O... o nosso filho?", balbuciou por fim. "O que... o que queres dizer com isso?"
"O que achas?"
Voltou a cravar os olhos na imagem.
"Estás a dizer que... que este miúdo é meu?"
"Não é evidente?", perguntou ela, apontando para o rosto fixado pela câmara. "Olha aqui as linhas do queixo, assim quadradas. Olha para a expressão sonhadora dos olhos. É o teu retrato chapado, não há dúvida nenhuma."
"Mas... mas a Joana disse-me que ele era parecido com o pai..."
"E é."
"Não é isso", corrigiu. "Ela disse-me que o miúdo se parecia com o teu marido."
Amélia encolheu os ombros, como quem diz que a opinião da irmã era irrelevante para o caso.