"As pessoas vêem o que querem ver", afirmou. "Eu disse à Joana que ele se parecia com o pai e ela acreditou. Limitei-me, aliás, a dizer-lhe a verdade. Ele parece-se realmente com o pai, só não lhe disse que o pai não era o Mário." Voltou a indicar a fotografia. "Se olhares com atenção, vais ver que o Zé foi buscar os teus olhos e a tua linha do rosto."
"Chama-se Zé?"
"Não sabias?"
"Nunca quis saber."
Ela sorriu levemente.
"Tonto", disse. "Chamei-lhe José. Ainda pensei em dar-lhe o teu nome, mas percebi que seria suspeito. Se olhares bem para a fotografia, no entanto, percebes logo as parecenças."
Luís fixou a imagem com estupefacção, vendo e receando acreditar.
"Cos diabos!", exclamou. "Será possível? Ele é meu filho?"
"Todinho."
"Mas porque não me disseste nada?"
"Estou a dizer-te."
"Antes. Porque não me disseste nada antes?"
"E que querias tu que eu dissesse?", perguntou Amélia. Mudou o tom de voz: "Olá, tenho aqui o teu filho, mas tens de estar calado e fingir que ele te é indiferente. Não o podes educar, não o podes mimar, nem podemos revelar nada a ninguém." Mirou-o como quem acabara de expor uma evidência. "Achas que eu deveria ter feito isso?"
"Quer dizer... pois, não me parece uma situação normal, mas... enfim... eu gostaria de ter sabido mais cedo."
"E o que adiantaria isso?"
"E o que adianta agora?"
"Agora... agora permite-te perceber que, para além de todos os outros, existe ainda mais um motivo pelo qual não posso permitir que sejas condenado."
Com um suspiro cansado, Luís pousou a fotografia sobre a mesa e esfregou os olhos com as pontas dos dedos.
"Isto não altera nada."
"Claro que altera."
"Pensa, Amélia", disse ele, colando o indicador à testa. "O que irá acontecer quando se souber que nós... que nós nos amamos?" Passou a mão sobre o sorriso que a máquina fotográfica fixara no tempo. "O que achas que vai fazer o teu marido?"
"Não quero pensar nisso."
"Mas tens de pensar. A cidade toda vai saber que ele é... enfim, foi atraiçoado. Ele vai sentir-se humilhado, o que julgas tu? Ninguém gosta de ser conhecido por... por cornudo. A partir daí, pode fazer tudo. Pode até matar-te!"
"Ele não vai fazer isso."
"Como sabes? A lei é branda com os maridos que matam as mulheres em casos de defesa da honra."
"O Mário é boa pessoa."
"Também Abraão era boa pessoa e o facto é que ia degolando o filho."
"Oh! Não é a mesma coisa."
Luís estendeu os braços e segurou-a pelos ombros, abanan-do-a como se a quisesse despertar.
"Amélia, não te iludas. O teu marido vai ser humilhado em público. Ele é um militar de carreira e os militares têm um código de honra muito forte. Se ele não fizer nada, será motivo de chacota por parte dos seus pares. Os militares aguentam muita coisa, mas não suportam ser apontados como bananas e gozados nos quartéis. Mesmo que ele não pegue em nenhuma arma e não cometa nenhum disparate, o mínimo que te fará é expulsar-te de casa e privar-te de ver as crianças. Não te iludas quanto a isso. Por mais que lhe custe, isso é o mínimo que ele terá de fazer para salvar a face. E se, para me atingir também a mim, isso significar punir igualmente o meu filho, fa-lo-á sem hesitações." Ergueu o dedo, sentencioso. "Que não haja dúvidas sobre isso."
"Mas, então... o que faço eu?"
"Nada."
Amélia abanou a cabeça, enfática.
"Nada, não pode ser!" exclamou. "Nunca aceitarei que sejas condenado por um crime que não cometeste. Se alguém tem de pagar, que seja eu."
"Mas tens de entender que não és só tu quem vai pagar", insistiu Luís. "Vai ser toda a família!"
"Vais ver que..."
A porta da salinha abriu-se bruscamente, interrompendo a conversa. O carcereiro espreitou e fez sinal para o relógio que trazia no pulso.
"Está na hora", anunciou.
"Só mais um instante", pediu Amélia.
O guarda deu um passo em frente e pousou a mão no ombro de Luís.
"Está na hora."
Os olhos dos dois amantes cruzaram-se, como se acreditassem que o olhar os poderia prender aos seus lugares. Queriam prolongar a conversa, ansiavam pelas palavras do outro, sentiam uma imensa fome de amor que apenas a presença do
outro conseguia saciar. Nem pensar em separarem-se naquele instante, nenhum dos dois se sentia com forças para deixar o outro.
"Só mais um momento", sussurrou ela, quase a implorar.
"Vamos!", ordenou o guarda, puxando Luís. "Está na hora de voltar para a cela!"
"Largue-me!", devolveu o recluso, contorcendo-se para se libertar. "Deixe-me!"
Mas o guarda, um homem gordo cujos braços valiam por dois do preso, bloqueou-o com as mãos e levantou-o à força.
"Já disse para irmos!"
Luís fez um esforço para se livrar daquele abraço asfixiante, mas parecia tolhido por uma caixa de ferro.
"Largue-me!"
"Vamos!", exclamou o guarda, já à beira de perder a paciência.
Apercebendo-se de que o carcereiro estava prestes a tornar-se violento, Amélia estendeu a mão e selou os lábios de Luís com os dedos, silenciando-o.
"Chiu", soprou. "Vai."
Seguraram o olhar um no outro, como náufragos apartados por correntes irresistíveis. Havia tanto para dizer, mas já nada mais poderiam falar. Pior ainda era não se poderem despedir com um beijo, um abraço, uma mera carícia; mas ali, à frente daquele homem e tolhidos pelas circunstâncias, mais não podiam fazer do que trocar aquele derradeiro olhar.
"Não faças nada sem voltar a falar comigo", pediu Luís, arrastado já para a porta.
"Tenho de ir à polícia", devolveu ela. "Não consigo voltar a dormir se não for."
"Dá-me só mais um dia", implorou o recluso, saindo já para o corredor. "Só mais um dia."
Amélia hesitou. Queria muito descarregar aquele fardo, libertar a consciência e salvar Luís de uma vez por todas, mas o pedido foi feito com tanta paixão que sentiu que não lho podia recusar.
"Está bem", assentiu. "Até amanhã."
A resposta veio já lá do fundo, como um lamento, a voz a desaparecer na treva.
"Adeus, Amélia."
XX
Havia já algum tempo que a ideia louca lhe germinara no espírito. Andava a ruminá-la com mais insistência nos últimos dias, à medida que as opções se iam fechando e deixava de ver saídas para a situação em que se encontrava, mas fora o encontro com Amélia que o pusera no limiar da decisão final.
Desde que fora preso que Luís passava quase todo o tempo a alternar entre estados de depressão e ansiedade, apenas intervalados pelos momentos de descompressão trazidos pelas breves conversas com as vozes que lhe chegavam do mundo exterior. Nenhuma visita, no entanto, teve um impacto tão devastador como a última de Amélia. Estar com ela fora infinitamente bom; quedar-se agora longe dela afigurava-se--lhe absolutamente insuportável. O seu era um amor sem esperança.
Precisava agora de considerar as consequências de tudo o que fora dito nessa conversa.
A tentação de aceitar o sacrifício que Amélia se propunha fazer era enorme. Enorme. De uma
assentada, e graças a um maravilhoso passe de mágica, ver-se--ia livre do pesadelo horrendo em que a sua vida subitamente se transformara. Como não desejar isso? Mas o facto é que a magia não passava de puro ilusionismo e Luís não podia aceitar que tanta gente pagasse o preço que seria inevitavelmente cobrado pela sua ilibação. Amélia pagaria com dureza, o marido também, Joana igualmente, para não falar naquele filho que acabara de descobrir.
Pegou na fotografia que Amélia lhe havia oferecido e contemplou o sorriso infantil que o espreitava do outro lado.