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Fez-se silêncio.

Perante a expectativa geral, Maria das Dores endireitou-se e, após uma breve pausa em que as respirações ficaram suspensas, soltou um grito e atirou-se a Amélia.

"Cala-te!"

Seguiu-se um bruá, Amélia sentiu as mãos da adversária puxarem-lhe os cabelos, viu tudo a andar à roda, agarrou em Maria das Dores e puxou-a também, as duas engalfinhadas uma na outra, o pandemónio instalou-se em redor, na confusão Amélia enxergava pernas, braços, chão e tecto, ouviam-se gritos, sentiu o corpo ser atirado para um lado e para o outro, tudo se sucedia numa sequência caótica, meu Deus o que é isto?, não se percebia já o que era direita e esquerda e cimo e baixo, no meio da barafunda interrogou-se sobre o que estava ali a fazer, que loucura era aquela, o que lhe passara pela cabeça, como escapar daquela tremenda confusão.

"Mas o que vem a ser isto?"

A voz de homem, ressoando como um trovão, impôs-se sobre a balbúrdia e, como por encanto, instalou o silêncio no corredor. As mãos que agarravam Amélia desapareceram de imediato e ela recuperou o sentido de equilíbrio. Levantou os olhos e, por entre a neblina difusa das suas próprias lágrimas, ainda algo atordoada com o inesperado da situação, vislumbrou o professor Marques de braços estendidos a separá-la da adversária. Maria das Dores, com os cabelos desgrenhados e a face enrubescida como um pimento, ofegava profusamente.

Num gesto quase instintivo, Amélia procurou os vidros do corredor para além da multidão que a rodeava e viu-se nos reflexos tão desconchavada quanto a outra. Mas foi uma mirada breve, quase de relance, pois logo uma mão poderosa lhe segurou o braço esquerdo e a puxou com brusquidão.

"Vamos ao reitor", ordenou o professor Marques. "Onde é que já se viu as meninas deste liceu comportarem-se desta maneira?"

Prendendo cada uma delas com uma mão, o docente de Matemática arrastou-as pelo corredor. Um burburinho excitado cresceu entre os alunos que se foram apinhando no local, substituindo a algazarra e o súbito silêncio de alguns momentos antes. O professor sentiu a animação aumentar em seu redor e, irritado, voltou a cara para os mirones que atulhavam a passagem.

"Para onde é que estão a olhar? Hã? Aqui não há nada para ver. Vamos, tudo para as salas! Andor!"

O professor Marques levou as duas alunas em lágrimas arrependidas para a porta do gabinete do reitor. Mandou-as aguardar ali, bateu à porta e desapareceu para além dela.

As duas permaneceram de pé, cabisbaixas, ainda a fungarem e a reprimirem os soluços, ansiosas por saírem daquele temido lugar, nervosas por saberem que não o podiam fazer.

Receavam o que lhes iria suceder. A reputação do reitor era terrível; diziam que ele fazia trinta por uma linha por dá cá aquela palha e o medo adensou-se quando ouviram o desabafo espontâneo de um rapazinho que por elas passou.

"Estais quilhadas;."

IX

A porta abriu-se e, com cara de poucos amigos, o professor Marques fez-lhes com a cabeça sinal de que entrassem. Amélia respirou fundo e assumiu a dianteira, resignada; tinha as pernas fracas de pavor, embora estivesse decidida a enfrentar o que fosse preciso. Cruzou a porta e mal entrou sentiu o cheiro a naftalina e o ambiente opressivo e escuro do gabinete, mas fez um esforço para controlar os nervos e não se deixou intimidar mais do que já estava.

Ergueu os olhos e viu o reitor sentado à secretária, gordo, a gravata negra e fina a estreitar-lhe o pescoço anafado, o colete a lutar por se manter apertado. Tornava-se evidente que aquele fato era pequeno de mais para tão grande corpanzil; o reitor parecia acreditar que uma roupa de número mais baixo conseguiria miraculosamente reduzir a imensidão da gordura que lhe tolhia os movimentos.

"Dá licença, senhor reitor?", murmurou Amélia, temerosa.

Atrás, Maria das Dores mostrava-se ainda mais intimidada e nem uma palavra conseguiu pronunciar.

"Hmpf", assentiu o reitor.

Fez-lhes sinal com os dedos sapudos de que se aproximassem. O professor Marques ficara lá fora, deixando-as sozinhas com o que lhes parecia ser um monstro horrendo. Amélia acercou-se da secretária de carvalho e Maria das Dores fez o mesmo, mas mais devagar, quase a arrastar-se pelo soalho frio; as duas trepidavam de medo, embora Amélia conseguisse ocultar melhor o tremor que lhe percorria o corpo e o terror que lhe insensibilizava as pernas. A sua adversária era porém menos controlada e as mãos agitavam-se-lhe desalmadamente; parecia em estado febril ou submetida aos rigores do gelo das serras.

O reitor ficou um instante a contemplá-las. Os olhos negros, pequenos e húmidos, traíam uma expressão astuta e cruel e saltitavam de uma para a outra, como se as medissem, avaliando-as em pormenor, urdindo em silêncio a ira punitiva. Amélia evitou cruzar o olhar com o dele e baixou os olhos. Com a atenção sempre pregada no chão, Maria das Dores soluçou e fungou.

"Com que então as meninas pensam que o liceu é uma arena de touros", disse por fim o reitor.

Tinha uma voz macia, quase um sopro. Noutras circunstâncias achá-la-iam bonita, mas ali parecia-lhes traiçoeira, o tom tenro insinuando ameaças invisíveis. Era como a brisa suave que precede as tempestades brutais; parece doce mas é amarga, tal como a rosa que atrai com as cores vivas das pétalas e trai com os espinhos que as folhas ocultam.

"Então? Perderam o pio? Não dizem nada?"

Mantiveram-se as duas caladas, sem saber o que fazer ou dizer. Intuíam que qualquer palavra poderia desencadear o pior, pelo que o mais sensato lhes pareceu o silêncio.

O reitor pegou numas fichas que tinha pousadas sobre a secretária e leu-as com lentidão intencional, quase a soletrar.

"Maria das Dores Carvalho Diniz", disse. Ergueu os olhos e fitou-as. "Quem é?"

Ambas continuaram caladas.

"Quem é?", rugiu com inesperada violência.

As raparigas deram um salto de susto, como se aquela pergunta fosse uma violenta bofetada; a voz branda transformara-se num feroz rugido. Maria das Dores começou a chorar copiosamente.

"É você?", perguntou ele, o tom assertivo mas agora menos violento, dirigindo-se a Maria das Dores.

Sem parar de gemer, a morena fez que sim com a cabeça.

"Então cale-se!", ordenou com rispidez. "Não quero aqui carpideiras!"

Intimidada, a rapariga quase susteve a respiração e o choro voltou a ser um gemido mal contido.

Com um arrulhar de aprazimento, o reitor voltou a atenção para a outra ficha.

"Ana Amélia Rodrigues de Campos." Ergueu a cabeça e fitou Amélia. "É você?"

"Sim", assentiu ela, a voz reduzida a um fio.

Os olhos miúdos do reitor estreitaram-se, perscrutadores.

"Ana Amélia? Porque não Maria Amélia? Todas as raparigas são Marias. Por que razão há-de a menina ser diferente?"

Amélia encolheu os ombros, impotente.

"Foram os meus pais que assim decidiram..."

O reitor afagou o queixo, fitando-a com desconfiança.

"Estou a ver que os seus pais não são bons católicos." Inclinou-se para a frente. "Serão lefrains?"

A rapariga não entendeu a palavra e manteve-se silenciosa. O reitor torceu os lábios e demorou-se a fitá-la e a estudar a ficha; depois a sua atenção voltou-se para Maria das Dores e os olhinhos negros puseram-se a saltitar entre as duas, mas sem que o responsável pelo liceu pronunciasse uma palavra.

Para combater o nervosismo, Amélia atreveu-se a olhar em redor. Atrás do reitor pendurava-se um retrato do general Carmona, de farda de gala e expressão sempre austera.