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"O meu menino", murmurou.

Uma e outra vez a mente voltou às consequências de aceitar o sacrifício que Amélia se propunha fazer, e sempre, sem falhar, chegou à mesma conclusão. Se Amélia contasse toda a verdade, desgraçar-se-ia a ela e a todos. Incluindo ao seu filho, dali em diante um bastardo que acabaria por ser educado longe da mãe e usado como arma para a punir por uma paixão que jamais deveria ser crime. O pequerrucho tornar-se-ia o bode expiatório do adultério da mãe e não havia nada que ele, Luís, e Amélia pudessem fazer para o proteger.

E como seria a vida dela nessas condições? Expulsa pelo marido, longe dos filhos, rejeitada pela irmã, apontada perante todos como mulher adúltera, Amélia embarcaria numa viagem de perdição. Se a vida, tal como ela se apresentava nesse instante, já era dolorosa, então tornar-se-ia intolerável.

Isso ele não podia aceitar.

Não tinha dúvidas, porém, de que Amélia avançaria mesmo com o seu supremo sacrifício. Era agora evidente que ela não admitiria a continuação do processo judicial nos moldes em que o caso decorria e ia fazer o que estava ao seu alcance para o travar. Mas o preço era demasiado alto, repetiu Luís a si mesmo, determinado a poupar Amélia a todo o custo. Para

o arrancar da cadeia, ela entregava-se a si e ao filho e a toda a família à ruína.

Isso ele não podia mesmo aceitar.

Se Amélia estava disposta a avançar para o supremo sacrifício, então ele não tinha o direito de mostrar menos coragem. O sacrifício teria de ser seu, só seu; essa era a única saída realista para toda aquela confusão.

Sentado na penumbra da cela, o olhar perdido no labirinto da mente, reviu vezes sem conta os argumentos que o impeliam ao sacrifício; o assunto tornara-se uma obsessão, um diálogo interior que não conhecia fim. A sua vida chegara a um beco. Joana não era capaz de lhe dar filhos, mas tinha um menino de Amélia que não podia perfilhar. Como se isso não bastasse, a liberdade fora-lhe roubada e havia sido enxovalhado com a humilhante detenção por homicídio. Ele, que sempre cuidara da sua honra e sempre defendera o que considerava justo, via-se atirado para um calabouço como um reles criminoso. Aos olhos do mundo não passava de um cobarde assassino.

Depois havia Amélia. A amante podia resgatá-lo, é certo, mas ao fazê-lo desgraçar-se-ia a ela e a todos em seu redor. E desgraçá-lo-ia também a ele, que só se salvaria graças à desgraça alheia. E tudo por causa da porcaria de país em que vivia, da mentalidade tacanha que se instalara, do consenso medroso que caracterizava aquele tempo.

Se a vida é isto, para quê viver?

Tornou-se claro que se haviam esgotado as soluções. Desde que tinha sido detido que se interrogava sem cessar sobre a sua situação. O que fazer? Como enfrentar aquilo? Como sair dali? A detenção e a humilhação revelavam-se insuportáveis. Mas o pior era não ver saídas aceitáveis. Não havia escapatória, era como se tivesse dado de caras com uma parede

intransponível. Portugal era aquilo e daquilo não sairia. A desesperança instalou-se-lhe no coração.

Havia analisado todas as opções e sempre rejeitara a derradeira, mas uma a uma tivera de as descartar a todas e encontrava-se agora a encarar a última, a mais final de todas, aquela que tudo resolveria de vez. Não aguento mais, pensou. Não há nada que eu possa fazer e ninguém me pode ajudar. Impõe-se um fim a esta situação, preciso de fugir de toda a confusão, há que acabar com tanto sofrimento. Isto é intolerável. Intolerável. Tenho de escapar desta cela que me tolhe, preciso de me libertar deste julgamento que me envergonha, não consigo viver num país onde não se pode respirar.

Paz.

Foi nesse instante, ali sentado no ambiente estático da cela, os pés assentes sobre as silhuetas geométricas que a claridade da janelinha gradeada recortava no chão, os olhos perdidos na chuvada de poeira que dardejava como um punhado de pirilampos diante do hálito de luz exalado pela janelinha, que a longa cadeia de raciocínio chegou ao termo e ele tomou a decisão final. Alguém teria de se sacrificar e não podia ser Amélia.

Quero paz.

Com o processo de decisão concluído, optou por tentar não pensar mais, não lhe fosse faltar a coragem quando dela mais precisasse. O pensamento paralisa a acção, sabia. Precisava de agir sem pensar e quanto mais cedo começasse melhor.

Aproveitando a claridade do dia, tirou o lençol da cama e começou a rasgá-lo em farrapos longos, simulando que tossia sempre que fazia força e dilacerava o tecido, de modo a disfarçar o barulhento crrrrrrr do pano a ser rompido. Ao fim

de uma hora tinha já uma longa faixa branca aos farrapos em vez do lençol rectangular.

Enrolou a faixa e escondeu-a por baixo do cobertor imundo.

Afadigara-se com o lençol e conseguira evitar pensar, mas nesse momento tinha as mãos livres e receava regressar ao fervilhar obsessivo da mente. Pegou numa folha e pôs-se a rabiscar uma mensagem para Amélia. Escreveria a Amélia, decidiu, e fá-lo-ia enquanto tivesse luz. Escrevinhou Meu amor, depois pensou que o marido poderia ver a carta e rasgou o papel, recomeçando na folha seguinte com um mais sereno Querida Amélia. Ia na segunda linha quando a porta de acesso aos calabouços se abriu e ouviu passos a aproximarem-se.

"O Afonso", chamou uma voz.

Era o guarda.

"Sim?"

"Tens aqui mais uma visita", anunciou. O homem aproximou-se da porta e tirou a chave do molho que guardava no cinto. "Olha lá, tens de dizer a esta malta que assim não pode ser, ouviste? Eu não sou nenhum moço de recados nem isto é um hotel."

"Quem é?"

"É o gajo de ontem. O... o coiso."

"Quem? O doutor Garcia?"

O carcereiro inseriu a chave na fechadura.

"Sim, é esse gajo."

O advogado, identificou. Mas que lhe quereria ele? Seria possível que Amélia já tivesse falado com o doutor Garcia? Não, isso ela não tinha feito. Prometera que permaneceria calada até ao dia seguinte e cumpriria. Provavelmente o advogado queria era convencê-lo a deixar que Amélia se sentasse no banco das testemunhas. A tentação era grande e um fogacho de esperança reacendeu-se no espírito de Luís, mas logo tratou de o apagar com firmeza. Do que ele precisava nesse momento não era de esperança, mas de coragem.

Salvar-se seria condenar Amélia e toda a família, e isso ele não podia permitir. Não se salvaria à custa do sacrifício dos outros.

"Diga-lhe que hoje estou indisposto."

O guarda acabara de abrir a porta da cela e imobilizou-se, desconcertado.

"Mau! Não queres falar com ele?"

"Não. Peça-lhe que volte amanhã."

O carcereiro fez um estalido irritado com o canto da língua.

"Ai, ai!", protestou, arqueando as sobrancelhas e voltando a fechar a porta da cela. "Já me estás a dar muito trabalho, ó Afonso! Pensas que eu estou aqui ao dispor ou quê?"

"Tenha paciência, mas o doutor Garcia que volte amanhã." Luís hesitou, considerando outras hipóteses. Gostaria de ver toda a gente, mas receava que a prova fosse dura de mais e lhe retirasse forças para levar adiante a sua decisão. "E diga o mesmo a qualquer outra pessoa que apareça para me ver."

"Incluindo à tua senhora?"

"Sobretudo a ela."

Regressou à carta e releu o pouco que havia redigido. Não seria estranho descobrirem uma carta endereçada a Amélia? Claro que isso suscitaria interrogações, por mais inócuo que o texto se viesse a revelar. Rasgou a folha em milhentas tiras, para a tornar ilegível.