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Não, não podia dirigir a carta a Amélia. Mas como faria então?

Tentou várias ideias até que lhe ocorreu uma solução.

Havia uma maneira de escrever a Amélia sem que ninguém o percebesse. Trilhando esse caminho, redigiu uma carta que rasgou de novo, e depois outra e outra ainda, escreveu até a luz do dia minguar e encontrar enfim a fórmula certa para explicar a sua fuga.

Releu a mensagem e deixou correr um suspiro. Era subtil e certeira; só os mais perspicazes a entenderiam. Sabia agora que, se estava preso e a esperança se fechara sobre ele, isso não se devia verdadeiramente às circunstâncias que rodearam a morte do Tino nem às mentiras ditas por Francisco nem à necessidade de impedir a desgraça de Amélia nem sequer ao ressabiamento vingativo do inspector da PVDE. Tudo isso não eram mais do que manifestações do mesmo problema. A causa verdadeira, a mais profunda de todas, estava no país em que vivia. E era isso que Amélia teria de entender na sua mensagem.

Quando fechou o envelope já a claridade tombava moribunda e a cela descaía para a meia-luz. Consciente de que não poderia deixar para trás nenhuma pista que denunciasse Amélia, pegou na fotografia do filho e, após prender naquele sorriso infantil um derradeiro olhar, rasgou-a também em mil tiras. Juntou os pedacinhos rasgados do cliché aos de todas as tentativas abortadas da carta que escreveu, empoleirou-se no banco e, estendendo as mãos por entre as grades da janelinha, lançou-os ao vento. Ficou a ver as tirinhas brancas a esvoaçarem com doçura, como flocos de neve a salpicarem o ar, adejando devagar sobre o jardim da Praça da República.

Respirou fundo, o sofrimento a queimar-lhe a alma. Dei-xou-se estar à janelinha e espreitou o crepúsculo que o céu avermelhado anunciava. Despediu-se do Sol sonolento e viu a noite assentar devagar. Começou por ser penumbra mas depressa se tornou sombra pontuada a pó brilhante, um manto

escuro que foi manchando gradualmente o céu e o afogou de negro cravado a diamantes.

Deslizou melancolicamente para a cama e ali ficou a languescer na escuridão. Nunca se sentira tão em baixo como nesse instante. Evitava raciocinar e buscava a lassidão do esquecimento, mas afogava-se em dor; não pensava noutra coisa que não fosse o poço sem fim em que a sua vida se convertera. Não havia nada que pudesse fazer, não havia ninguém que o fosse ajudar, não havia refúgio onde pudesse encontrar esperança. Passara dias e horas e minutos na cadeia à procura de soluções e apenas o silêncio lhe respondera; era como se não houvesse respostas. Por mais que se esforçasse, não encontrava paz no pensamento de que Amélia se sacrificaria para o salvar. Isso não seria salvação, concluiu; seria maldição eterna.

Luís jurou a si mesmo que não podia deixar que os acontecimentos seguissem o seu curso natural até à perdição. Não podia deixar que as mãos invisíveis da autoridade corrompida o arrastassem para o seu fim, pondo e dispondo da sua vida. Precisava de controlar o destino, tomá-lo em mãos e impô-lo. Tinha feito tudo o que estava ao seu alcance, havia vasculhado as diferentes alternativas, explorara todos os caminhos possíveis e a verdade, a terrível e amarga verdade, é que ainda se afundava. Esgotara as opções. Ou melhor, não as esgotara todas. Restava-lhe ainda uma derradeira, a mais desesperada, aquela que enfim o libertaria.

A final.

A sombra foi quebrada pelo aparecimento do guarda, que, como de costume àquela hora, trazia consigo um candeeiro de incandescência petromax, a única iluminação nocturna existente nos calabouços. O candeeiro emitia uma luz azulada no

meio do corredor, pestanejando ao ritmo da dança dos insectos que o orbitavam, e aos reclusos chegava já apenas uma leve claridade intermitente, bastante para discernirem os contornos das coisas, mas insuficiente para enxergarem os pormenores.

Esperou pelo jantar, que não tardou a surgir num tacho trazido pela mão do carcereiro.

"Hora do banquete", anunciou o homem.

Era uma sopa aguada, feita de legumes e decerto alguns insectos invisíveis à meia-luz, e duas fatias de broa. Olhou para a sopa com desprendimento e percebeu que não conseguiria comer; não sentia fome e pousou-a no chão. Tinha a mente ocupada com a tarefa sobre-humana que o esperava. Enquanto martelava a solução para tudo aquilo, libertou os olhos e deixou-os passearem como vagabundos, deambulando pelas sombras fantasmagóricas que o clarão azulado tingia nas paredes desbotadas da cela.

Quando a hora da refeição terminou e o guarda veio aos calabouços e apagou o petromax, a obscuridade absoluta reinstalou-se na cela. Luís ficou um instante sentado na cama, os olhos fitos na treva, a respiração leve e controlada; parecia uma estátua indiferente ao deslizar inexorável do tempo. A vida é um sonho, pensou. A morte é o despertar. Passamos um universo inteiro a flutuar no vácuo da não existência; a vida não passa de um fugaz tremeluzir da chama do petromax na vasta noite da eternidade. A vida é a anomalia, a morte é o regresso ao estado original; a vida é um sopro e a morte é o ar.

Agora, decidiu, gritando a palavra em silêncio.

Agora.

Ergueu-se com um movimento trágico, assaltado pela vertigem de quem está diante do abismo e receia perder a coragem. Tacteando às escuras, levantou o cobertor e pegou na longa

faixa esfarrapada em que transformara o lençol. Não quis pensar no que estava a fazer, mas começou a sentir o coração a saltar-lhe no peito e as mãos a tremerem e as pernas a fraquejarem e os pulmões a arquejarem e os nervos a cederem.

"Não vou conseguir", sussurrou, ofegante. Mas logo pensou em Amélia a expor-se ao mundo e no seu filho apartado da mãe e sentiu voltar-lhe a coragem do desespero. "Tem de ser, Luís. Tem de ser."

Sempre às apalpadelas, encostou o banco à parede, pôs-se em cima dele e chegou com as mãos ao ferro frio das grades. Uma luz ténue brilhava lá fora. Esticando o nariz, concedeu-se um instante de trégua para saborear o ar e aspirar a brisa de liberdade que soprava por entre as árvores e lhe acariciava o rosto. Foram só alguns segundos, porque depressa retomou os movimentos.

Com as mãos a tremerem quase descontroladamente, passou duas vezes a faixa do lençol pelas grades, de modo a garantir a sua robustez, e formou um laço que fechou com dois nós. Puxou a faixa com força, testando a sua resistência. Aguentava. O coração era já um batuque dentro do peito, a respiração acelerada tornara-se ofegante e sentia dificuldade em controlar os movimentos das mãos. Antes que a coragem se esvaísse, pôs o laço ao pescoço, apertou o nó e, com tudo já a postos, deixou-se assim ficar um longo instante.

Faltava-lhe apenas uma última coisa. Teria de fazer um jeito com os pés e derrubar o banco.

Mas, agora que ali se encontrava, já depois de ter tudo preparado e a postos para o passo final, não se achava capaz de completar o acto. É ridículo isto que eu estou a fazer, pensou. Ridículo! Não vou resolver nada.

O pensamento acalmou-o um pouco e ajudou-o a regularizar a respiração. Ansiava pela libertação da fuga final, mas ao

mesmo tempo esperava a salvação. Era uma estranha ambivalência aquela que nesse instante o dividia. Sentia que não havia outro caminho, mas simultaneamente ansiava por uma intervenção redentora. Pôs as mãos no laço e preparou-se para o retirar, consciente de que já não seria capaz de voltar a pô-lo ao pescoço. Mas, no último instante, como se uma sombra negra lhe tivesse de súbito toldado o espírito, imaginou Amélia a desfiar toda a história diante de um polícia e anteviu a infame cadeia de acontecimentos que esse simples relato iria desencadear. Primeiro a verdade, depois a vergonha, por fim a desgraça.