Num assomo final de desvario, como um espírito rebelde que se revolta contra o destino marcado, fez força com os pés, sentiu o banco balouçar e desequilibrar-se e, com o abandono louco e cego de quem se lança sobre um precipício, no momento em que o apoio lhe falhou sob os pés sentiu toda a existência derramar-se-lhe num derradeiro sopro de vida.
"Amélia."
Epílogo
O corpo inerte do doutor Luís Afonso foi encontrado na madrugada seguinte quando o guarda fez a primeira ronda da manhã pelos calabouços da cadeia municipal de Penafiel. Vendo uma sombra pendurada na grade da janela, sacou atabalhoadamente a chave que guardava no molho, irrompeu pela cela e sentiu o pulso do recluso suspenso.
Nada.
Olhou em redor e viu um envelope sujo deitado sobre o lençol. Pegou nele e franziu o sobrolho ao verificar que não tinha destinatário. O sobrescrito estava em branco, embora fosse evidente que continha uma carta no interior. Sem tocar em mais nada, saiu da cela e foi telefonar ao director da cadeia, que lhe deu ordens para chamar o médico.
Meia hora mais tarde, uma pequena multidão formigava na cela. O médico desceu o corpo e, com a ajuda do guarda, estendeu-o sobre a cama, cobrindo-o com um lençol. Uma vez confirmado o óbito, o director mandou chamar o padre, que
chegou ao local em quinze minutos. De cruz na mão, o pároco benzeu o morto e, preocupado em saber quem deveria consolar, voltou-se para o director da cadeia.
"A família?"
"Ah, pois!", exclamou o director, fazendo um estalido com os dedos. "É preciso avisar a família!"
"O defunto era casado?"
"Sim", assentiu o responsável pela cadeia municipal, exibindo o envelope encontrado aos pés do recluso. "Deixou uma carta. Vamos entregá-la à mulher."
O padre pegou no envelope e estudou-o com um ar interrogativo.
"Mas isto está em branco", constatou. "Como sabe que é para a mulher?"
"Bem... na verdade não sei. O que sugere que façamos?"
Os dedos do pároco deslizaram para o canto do sobrescrito e um brilho coscuvilheiro cintilou-lhe nos olhos.
"Vamos abrir."
Sem deixar correr tempo que permitisse reconsiderar a sugestão, o padre rasgou o sobrescrito e extraiu do interior uma pequena folha dobrada em quatro. Desdobrou-a e, as sobrancelhas contraindo-se numa expressão perplexa, leu duas vezes as quatro linhas ali rabiscadas.
"Pobre diabo!", exclamou enfim. "Ficou tresloucado."
Incapaz de conter a curiosidade, o director da cadeia esticou o pescoço sobre o ombro do sacerdote e espreitou a mensagem que o recluso havia deixado.
"O que é isto?", admirou-se. "Um poema?"
"Sim, veja lá."
"Dorme, Mãe Pátria}", interrogou-se, lendo o início da primeira linha. "Que história é esta?"
"Leia tudo."
O director passou duas vezes os olhos pelo verso, tentando apreender o seu significado, e terminou a leitura com as sobrancelhas cerradas em desaprovação.
"Isto é antipatriota", concluiu, quase indignado. "Já viu isto, senhor padre? O gajo está a falar mal do país... como se o país tivesse alguma coisa a ver com as trapalhadas em que se meteu! Ele há com cada uma..."
O pároco abanou a cabeça e assumiu uma condescendente expressão de benevolência.
"O desgraçado já não devia dizer coisa com coisa, coitado", murmurou, a indulgência a jorrar-lhe pelos lábios. "Que o Senhor tenha piedade da sua alma e na Sua infinita misericórdia o acolha no Seu Reino."
Franzindo o sobrolho, o director apontou para o nome por baixo do poema.
"E isto aqui?"
"É o nome dele."
"Não, não", disse o director, abanando enfaticamente a cabeça. "Ele não se chamava Fernando Pessoa. Chamava--se Luís Afonso. Porque raio pôs outro nome debaixo do verso?"
O padre voltou-se para o corpo estendido na cama da cela e, o olhar a transbordar de piedade beata, benzeu-o uma última vez.
"Ensandeceu, pobrezito."
O funeral foi realizado dois dias mais tarde, em Vinhais. Toda a manhã no velório havia sido triste, com um temporal a entornar-se sobre a vila, as ruas abaladas pelo ocasional descarregar do trovão; dizia uma velhinha que era o céu a bradar pelo doutor Afonso e por tudo o que lhe tinham feito. Choveu durante todo o dia, mas, quando o féretro abandonou o hospital, a carga de água suspendeu a sua fúria, afastando-se com deferência para além do Montezinho, e um fio púrpura começou a salpicar as nuvens de sangue dócil.
Três dezenas de pessoas compareceram ao funeral, a maior parte vindas de Alfândega da Fé e de Penafiel. Foi uma cerimónia curta, mas digna, tão digna que nenhum animal pôde prestar homenagem ao homem que os amava; a ordem do responsável clínico foi de tal modo firme que nem o inconsolável cão do defunto foi autorizado a entrar no hospital ou a acompanhar o cortejo fúnebre.
Como se percebesse tudo o que se passava, Nilo desapareceu nesse dia e nunca mais foi visto. Joana devolveu Relâmpago ao exército e vendeu a casa de Vinhais para ir viver outra vez com o padrinho em Penafiel. Uma vez que o principal suspeito estava morto, o processo do homicídio do Tino foi arquivado e esquecido. A vida retomou o curso normal, embalada na doce rotina que se reinstalou com pacata bonomia.
Apenas Amélia nada esqueceu. Viveu o luto em silêncio, a dor a incendiar-lhe a alma, o segredo a secar-lhe os olhos. A pretexto de visitar as terras da família em Trás-os-Montes, aproveitou todas as oportunidades de que dispôs para dar um salto a Vinhais, e sempre que lá ia fazia questão de depositar uma rosa na campa de Luís.
Foi assim, numa dessas visitas, que teve conhecimento do estranho rumor que circulava entre os coveiros da vila. A roda de uma sepultura acabada de cobrir, as pás ainda sujas de terra húmida e as silhuetas recortadas contra o Sol poente, os homens revelaram-lhe que desde há algum tempo não se podia vir ao cemitério durante a noite. Diziam eles que era por causa dos monstros que por lá agora apareciam.
Porém, olhando os parceiros de esguelha, logo um dos coveiros corrigiu os restantes:
"Não são monstros, não senhor, que eu o vi muito bem, sou do Montezinho e topo-os à distância, pois então! É um lobo, ouviram? É um lobo que por cá aparece! E vai sempre para ali, camano! Bota-se à pela noitinha sobre a sepultura do deitor!"
Um lobo, vejam só!, exclamaram os outros com admiração. Anda um lobo a rondar o cemitério de Vinhais à noite!
Um lobo.
Percebendo a história como mais ninguém ali a podia entender, Amélia teve de voltar as costas para ocultar as lágrimas que de repente lhe marejaram os olhos, tão inesperadas como a água de uma onda traiçoeira a galgar a praia. Corria pelo cemitério um vento quente e seco, semeando remoinhos de pó por entre as campas; eram peões difusos a rolar com repentina fúria, como se o tempo se desfizesse da poeira dos dias que se finaram.
Desculpando-se com a súbita ventania que ali se levantara, Amélia afastou-se do grupo e foi derramar a saudade diante da lápide de Luís. Feria-a a memória daquele que por ela morrera, doíalhe a impotência que sentia perante o destino, afogava a revolta em fúria mal contida. Mas agora tudo isso superou porque sabia enfim que o seu homem não estava só, que ela não era a única que não o esquecera, que havia outro para quem Luís era mais do que uma simples memória.
Não havia lobo nenhum.
Era Nilo que zelava pelo dono.
Dorme, mãe Pátria, nula e postergada E, se um sonho de esperança te surgir, Não creias nele, porque tudo é nada, E nunca vem aquilo que há-de vir.