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As duas raparigas lá em baixo hesitaram, sem saber se deviam responder à pergunta.

"O badigo não lhes passou batibardo nenhum", disse uma delas, contornando a questão.

"Então?" "Deu-lhes uma trepa!"

A espera foi impaciente, mas à hora do jantar já a noite caíra e apenas as lamparinas a óleo iluminavam dois ou três cantos da casa com a sua luz amarela e tremelicante; dona Beatriz lá sentiu a porta do quarto da filha destrancar-se e ouviu-lhe os passos ressoarem pelo soalho encerado. A mãe permaneceu no seu lugar, junto à lareira crepitante, as pernas cobertas por um cobertor de lã e as mãos inquietas a tecerem uma renda com um complicado desenho geométrico. Parecia concentrada na renda, mas a mente fervilhava-lhe de ideias e de dúvidas. O reitor dera uma trepa na filha? O que raio fizera ela para merecer tal tratamento? E era possível bater em alunos tão grandes?

"Rai's t'a parta o diabo!", remoeu, sem notar que transformava os pensamentos em palavras. "Que confusão para ali vai!"

Suspirou e deu um nó mais complicado na renda, a luz quente da lareira a dançar-lhe no corpo e no soalho, parecia que sombras fantasmagóricas lhe enchiam a sala. Ai se o seu Raul ainda por cá andasse! Maldita guerra, amaldiçoados gases que lhe tinham levado o homem! Que saudades sentia dele! Todos os dias pensava no Raul, que tanta falta fazia naquela casa. Precisava dele para si, para o seu aconchego, para as suas necessidades, para o seu corpo, para a sua tranquilidade, mas também precisava dele para as filhas. Isto de as meninas crescerem sem pai não lhe parecia nada bom. Como era difícil educar duas raparigas sem o pulso forte de um varão por perto! Francisco já se ia fazendo homenzinho, mas não era a mesma coisa; não passava de um monte desmiolado de músculos, para estas coisas não servia! Sabia que, sem Raul a seu lado, que Deus o tivesse na Sua infinita misericórdia, teria de fazer o papel de mãe e de pai. Se apenas um desses papéis já era difícil de desempenhar, imagine-se os dois ao mesmo tempo. E agora, pensou com fatalismo, chegara uma daquelas horas em que tinha de juntar forças e fazer o mais difíciclass="underline" o papel de pai.

Sentiu a filha entrar na sala.

"Anda cá, Ana Amélia", ordenou com severidade, sem tirar os olhos da renda. "Bota-te aqui ao borralho."

A rapariga aproximou-se com passos ligeiros e parou diante de dona Beatriz, as pernas iluminadas pelo estrepitar nervoso da lareira, parecia que espectros se agigantavam no soalho.

"Sim, mamã?"

Dona Beatriz deu mais um nó complicado na renda.

"Então?", perguntou logo que o nó ficou pronto, mas sempre com os olhos fixos na renda. "Que se passa?"

"Nada, mamã."

Mais um nó.

"Vieram cá as tuas colegas. Queriam saber se estavas bem."

"Sim."

"Sim, o quê?"

"Estou bem."

Outro nó.

"Então por que razão te fechaste no quarto?"

Silêncio.

"Diz lá. Por que razão te fechaste no quarto?"

A rapariga encolheu os ombros.

"Apeteceu-me."

Dona Beatriz parou enfim de tricotar e ergueu a cabeça, fitando pela primeira vez os olhos inchados e avermelhados da filha.

"Olha lá, estás a brincar comigo?"

Amélia fitou o soalho, sem nada dizer.

"Diz-me, estás a brincar comigo?", insistiu a mãe, elevando pela primeira vez a voz.

"Não."

"Então faz o favor de me explicar imediatamente por que razão te fechaste no quarto!"

A filha permaneceu calada. Conhecendo-a e sentindo que por aquela via seria difícil arrancar dela alguma coisa, dona Beatriz decidiu mudar de ângulo. Precisava de ser arguta.

"As tuas amigas dizem que foste levada ao reitor. É verdade?"

Amaldiçoando as colegas em silêncio, a rapariga assentiu.

"É."

"E é verdade que ele te bateu?"

"Sim."

"A ti e à tua colega?"

Amélia calou-se.

"Em quem bateu ele?"

"Nas duas." Uma lágrima escorreu-lhe pelo rosto pálido e o lábio inferior começou a tremer. "Mas mais em mim."

A filha pôs-se a chorar baixinho, humilhada, e dona Beatriz carregou as sobrancelhas, atónita.

"Mais em ti? Que fizeste tu para merecer isso?"

Amélia fungou, tentando controlar-se.

"Nada."

"Mau! Nada não foi, de certeza." A mãe inclinou-se para a fitar bem nos olhos. "Por que razão bateu ele mais em ti?"

"Não sei, mamã." Gemeu baixinho. "Danou-se por eu não me chamar Maria."

"Che!", exclamou dona Beatriz. "Pode lá ser! O homem não te ia dar umas lapadas só por não te chamares Maria..."

"Mas deu!", insistiu a filha, indignada por a mãe pôr em dúvida a sua palavra em assunto tão sério. "Ele disse que as católicas são todas Marias e que se eu não era Maria é porque era uma...

uma latraim... ou alefrim... enfim, uma coisa dessas." Mordeu o lábio. "Nem sei o que isso quer dizer..."

Dona Beatriz estreitou as pálpebras, intrigada. Só conhecia uma palavra que rimava com aquela.

"Terá sido lefraim?"

"Isso."

A mãe estremeceu, chocada.

"Valha-me Deus!"'

"O que foi, mamã? O que quer dizer isso?"

"É uma expressão do Rebordelo", explicou. "Ele chamou-te judia." Meditou um pouco, perplexa com aquela revelação. "Rai's t'a parta o diabo!", murmurou para si mesma. Fixou os olhos na filha.

"O reitor convocou-te ao gabinete para te dar umas lapadas só porque eras uma lefraim?"

Amélia abanou a cabeça.

"Não. Chamou-me isso só depois de ver na ficha que eu não tinha Maria no nome."

"Então por que diabo te chamou ele ao gabinete?"

"Não foi ele que me chamou. Levaram-me a ele."

"E porquê, valha-me Deus?"

A filha calou-se.

"Diz lá: porque te levaram ao reitor?"

"Porque me zanguei com uma colega", sussurrou, quase inaudível.

"Discutiste com uma colega?"

"Sim."

"Foste levada ao reitor apenas por teres discutido com uma colega?" Dona Beatriz abanou a cabeça e contraiu o nariz, numa expressão céptica. "Não acredito. Alguma coisa mais deves ter feito."

"Zangámo-nos."

A mãe inclinou a cabeça.

"Andaram à bulha?"

"Sim."

Dona Beatriz endireitou-se. Estava explicado. A filha envolvera-se num conflito com uma colega e fora levada ao reitor, que as punira. A primeira parte parecia-lhe relativamente clara, a segunda nem tanto. Que ela soubesse, Amélia já não estava com idade de ser sovada no liceu. E

aquela conversa de o reitor observar que ela não se chamava Maria, de dizer que ela era uma lefraim e de lhe ter batido mais do que à colega tinha muito que se lhe dissesse, ai tinha, tinha.

Precisava de tirar tudo aquilo a limpo. Claro, era sempre possível que houvesse mais alguma coisa que a filha não lhe tivesse revelado; a bem dizer, isso até se lhe afigurava muito natural. As coisas não batiam certo naquela história toda. A começar por duas raparigas se terem envolvido à pancada, o que não lhe parecia nada normal. Ainda se fossem rapazes, enfim, já se sabe como eles são, bastava olhar para o bruto do Francisco. Mas... raparigas?

"Porque andaram vocês à bulha?"

"Ela estava a fazer pouco de mim."

"Como? O que dizia ela?"

"Dizia que..." Hesitou, percebendo nesse instante onde aquela conversa a iria inevitavelmente conduzir. "Enfim... fez pouco de mim."

"Isso já eu entendi", afirmou dona Beatriz, consciente pela hesitação da filha de que acabara de tocar num ponto crucial. "Mas o que te disse ela? Conta lá."

A rapariga fez um ar comprometido.

"Nada."

"Ana Amélia!", cortou dona Beatriz de súbito, a voz rompendo como um trovão. A filha deu um salto de susto, apanhada de surpresa pela violência da interpelação. "Fazes favor de me dizer imediatamente o que te disse a tua colega!"