Amélia baixou os olhos e manteve-se muda.
"Vou tirar este assunto a limpo", avisou a mãe, erguendo o dedo em jeito de aviso. "Ou dizes agora tudo o que se passou ou saio já à rua e vou a casa das tuas amiguinhas saber o que aconteceu!
E podes ter a certeza que saberei tudo, ou eu não me chame Maria Beatriz Rodrigues de Campos!"
A filha olhou-a, alarmada. Bem capaz disso era ela, percebeu com mal disfarçado horror. E seria desastroso que a mãe tomasse conhecimento de tudo pela boca daquelas alcoviteiras; elas se encarregariam de expor o caso da forma mais maldosa e sórdida que lhes fosse possível. Isso Amélia não podia de modo algum permitir.
"Então?", insistiu dona Beatriz. "Dizes-me por que razão se puseram as duas à bulha ou vou ter de perguntar às tuas amiguinhas?"
Amélia quase se encolheu toda.
"Foi por causa de um amigo."
Ah!, pensou dona Beatriz, as peças do puzzle a encaixarem por fim. Um rapaz! Que estúpida fora em não ter percebido mais cedo! Claro que tinha de haver um rapaz na conversa, pois então!
Observou pela primeira vez a filha com olhos atentos de mulher. Amélia tinha o cabelo castanho-claro ondulado com madeixas douradas, olhos cor de caramelo, um rosto perfeito, ° corpo a encher-se no peito e no rabo, a cintura estreita realçando-lhe as curvas de fêmea voluptuosa.
Parecia mesmo
uma daquelas actrizes americanas. Tinha de se render à evidência: a sua filha já não era a criança inocente que sempre vira, o anjo celestial que irradiava pureza virginal; tornara-se uma mulherzinha apetecível, ainda virgem decerto, mas uma maçã suculenta e pronta a ser mordida, objecto seguro de cobiça pecaminosa. Claro que os rapazes se interessavam por ela! E era evidente que ela se interessava pelos rapazes, afinal estava em idade disso.
Ah, como pudera ser tão cega?
"Um amigo, dizes tu? E quem é ele?"
"É... é lá do liceu."
"Como se chama?"
"Luís."
Fechando o rosto, dona Beatriz baixou os olhos e retomou a renda que deixara pousada no regaço. A lareira crepitava sem cessar e os estalidos da lenha a arder enchiam a sala escura.
"Hásde-mo trazer cá no domingo", ordenou a mãe. "Quero conhecê-lo."
Foi só na manhã seguinte, quando se encontrou com Amélia na habitual esquina da rua, que Luís soube do sucedido na véspera com as colegas e o reitor.
"Aquele... aquele porcho, aquele bestoiro", ruminou furiosamente, os músculos dos maxilares a contraírem-se de irritação. "Sabes o que lhe vou fazer?"
"Tem calma, Luís."
"Vou montar-lhe uma espera e dar-lhe umas valentes mur-raças!" Deu um soco no ar, como se o reitor estivesse diante dele. "Ai vou, vou!" Mais uns socos. "Vou desfazê-lo, vou reduzi-lo a fanicos, vou..."
"Não vais nada."
"Espera e verás!" Estreitou os olhos, tentando conter a fúria. "O lafardo! O tinhoso! O cara de trampa! Até mete ranço!" Mirou Amélia. "Quem pensa ele que é?"
A rapariga olhou em redor, preocupada com a atenção que o namorado atraía. Luís elevara a voz e alguns transeuntes miravam-nos já com interessada curiosidade, interrogando-se sobre se estaria iminente alguma altercação entre os dois.
"Pronto, pronto", disse ela, pegando-lhe no braço e procurando acalmá-lo. "Já passou, não interessa."
"Como, não interessa?", espantou-se Luís. "Então aquele javardo atreve-se a pôr-te a mão em cima e tu dizes que não interessa?"
"Não me pôs a mão. Pôs o bastão."
"Não desconverses: Ele bateu-te! Quem pensa ele que é? Como se atreveu?"
"A minha mãe vai falar com ele."
"Eu é que vou falar com ele." Exibiu o punho fechado. "Falar, não. Vou é partir-lhe aquele focinho de porco! Vou... vou desfazer-lhe aquela tromba de suíno!"
Atravessaram a rua, tomando cuidado para evitar uma carroça de lenha puxada por duas mulas.
Amélia deixou-o praguejar durante algum tempo, sabia que ele precisava de libertar a irritação; era como se fervesse por dentro e o melhor que havia a fazer era deixar a fúria descarregar-se pelas palavras. Enquanto batesse no ar não batia em ninguém; enquanto praguejasse sozinho não haveria quem se sentisse insultado.
Quando o rapaz se calou, ela respirou fundo para ganhar coragem e concluir a conversa.
"Ainda não te contei o pior", disse Amélia.
"O quê? Há pior?"
"Há."
Luís rolou os olhos. Que mais viria aí?
"Diz lá."
"Tive de falar de ti à minha mãe."
Ele conteve-se, subitamente muito atento.
"A sério?"
"Teve de ser. Ela quis saber por que razão a Maria das Dores se meteu comigo."
O rapaz considerou aquela informação e sentiu a curiosidade crescer; ora ali estava uma novidade interessante.
"E então? O que disse ela?"
"Quer conhecer-te."
Luís sorriu, encantado com a ideia.
"Ai é? Mas isso parece-me óptimo!"
"Não sei."
"Porquê? Qual é o problema?"
Amélia manteve os olhos presos na calçada, olhando o empedrado mas vendo o futuro desenrolar-se diante de si, como se o passeio encerrasse o oráculo do seu destino.
"Tu não conheces a minha mãe."
XI
O tapete de nuvens destilava um vapor de cinza, esganando a luz com a sua sombra ameaçadora.
Dona Beatriz espreitou o céu de chumbo e percebeu que a obscuridade que se avizinhava era prenúncio certo de chuva. Fez sinal a Amélia e a Francisco de que não a largassem e apressou o passo em direcção à Igreja de São Vicente, no Largo do Principal.
Durante a missa dominical, a viúva considerou cuidadosamente a situação. Desde a morte do marido que assumira a educação de Amélia em Bragança, enquanto a filha mais nova fora para casa do padrinho, lá no Douro. O casamento das moças constituía o culminar natural desse processo, pelo que teria de ser encarado com muita cautela; cada pretendente seria sujeito a um exame cuidadoso, uma vez que lhe parecia fundamental que os candidatos tivessem uma situação e um estatuto à altura das ambições que alimentava para as suas meninas.
No final da missa cruzaram o painel de azulejos à saída da igreja e foram recebidos na rua por uma chuva miudinha;
eram por certo os céus a abençoar a decisão que a viúva havia tomado durante a homilia.
Ou ela não se chamasse Maria Beatriz Rodrigues de Campos, a sua bijou não se casaria com o primeiro bandalho que lhe aparecesse pela frente.
A chuva intensificou-se pelo caminho, desfazendo-se numa cortina de veludo tracejante.
As bátegas furiosas fustigavam os telhados e das bordas das telhas abatiam-se fios de água; pareciam lâminas de prata, com um gorgulhar molhado que se derramava em torrente pelas pedras da calçada. Os três aconchegaram-se uns aos outros e enfrentaram assim a intempérie, fundindo-se na bruma líquida como fantasmas a derreterem-se em luz.
Ao chegarem a casa deram com uma sombra esguia, um vulto plantado à porta como uma sentinela, abrigado por um guarda-chuva negro. Dona Beatriz espreitou Amélia de relance e a expressão nervosa e ansiosa da filha confirmou-lhe que era aquele o sujeito que a trazia pelo beiço.
Sem sequer se dignar olhá-lo, entrou em casa e pôs-se à vontade. Tirou o casaco molhado, enroscou-se num xaile macio e foi instalar-se à lareira, que estalava numa fúria mal contida.
"Mamã, o Luís está aqui", disse-lhe Amélia, que ficara à entrada, dividida entre o aconchego do lar e a companhia do namorado.
Dona Beatriz pegou nuns rolos de lã, indicou a Francisco que permanecesse ao seu lado e pôs-se a tricotar uma camisola vermelha que tinha começado havia dois dias.