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"Mamã?"

A viúva manteve o olhar baixo, fixo nos nós da camisola que tricotava com destreza.

"Ele que entre", disse enfim, depois de uma longa e pesada pausa.

Amélia fez um sinal para a rua e Luís entrou. Encostou o guarda-chuva molhado à porta, tirou o chapéu da cabeça e aproximou-se, acompanhado de Amélia.

"Bom dia, minha senhora", disse ele num tom apropriadamente submisso, o chapéu seguro pelos dedos nervosos.

Dona Beatriz nem levantou os olhos para o ver.

"Bom dia?", admirou-se, sempre concentrada na camisola que crescia na ponta das agulhas.

"Porquê bom dia? Que eu saiba já passa do meio-dia. Será que o cavalheiro é porventura um daqueles ébrios que se bota nas tabernas até de madrugada e depois acorda a meio da tarde e ainda pensa que é manhã cedo?"

Luís arregalou os olhos e engoliu em seco. A entrevista começava inesperadamente mal.

"Bem... sim", gaguejou, desorientado. "Quer dizer... não, enfim... não frequento tabernas nem acordo tarde, minha senhora. Sou... sou até muito madrugador. Só que, como ainda não almocei, estou com a impressão que é de manhã, está a ver?"

"Não estou a ver, não." Fez um estalido com a língua. "Por que razão não almoçou? Não tem meios para se alimentar?"

"Sim. Claro que tenho, claro."

"E, no entanto, ao mencionar o almoço assim tão a despropósito dá a impressão de que quer vir aqui comer à nossa conta..."

"Não, não é nada isso", negou, abanando enfaticamente a cabeça. A viúva estava a dificultar as coisas e, apesar do frio, Luís sentiu um rubor a encher-lhe o rosto e gotas de suor a brotarem-lhe do alto da testa. "Só falei no almoço para dizer que na minha cabeça a tarde apenas começa depois do almoço, mais nada. Não estava de modo nenhum a insinuar o que quer que fosse."

Fez-se um silêncio penoso; apenas se escutava o som abafado da viúva a tricotar a camisola de lã, os estalidos da lenha a pipoquear na lareira e o harmonioso concerto das bátegas que tombavam ao de leve nas telhas, lá em cima, como se obedecessem a uma melodia desordenada.

Luís observou pela primeira vez Francisco, que permanecia ao lado de dona Beatriz como um acólito, e ficou espantado com o seu aspecto; tinha o cabelo cortado curto e a testa abria-se em grandes arcadas supraciliares, por baixo das quais brilhavam dois olhinhos negros e inexpressivos. Mas o mais impressionante era o seu corpanzil baixo e atarracado, com costas largas e membros desenvolvidos, os braços da largura de pernas; parecia impossível que aquele rapaz compacto tivesse apenas doze anos acabados de fazer.

"Com que então o senhor anda a conversar com a Amélia", rosnou dona Beatriz, quebrando o falso sossego que se instalara na sala. "Alimenta, creio eu, propósitos em relação à minha bijou."

Luís não conhecia o petit nom, mas presumiu, e bem, que bijou seria alcunha familiar de Amélia.

"Sim, minha senhora."

"Como calcula, a minha bijou não sai com a primeira andorinha que lhe aparece à frente, não é?"

"Claro que não, minha senhora."

"Se bem entendi o que me disse a bijou, o senhor dispõe de meios..."

"Sim, sim. Os meus pais faleceram e herdei as terras."

Esta informação chamou a atenção da viúva. Dona Beatriz ergueu um olho e mirou Luís pela primeira vez.

"Herdou terras, ora é?"

"Sim, minha senhora. O meu pai finou-se quando eu era pequeno e a minha mãe faleceu no ano passado, de maneira que fiquei com as propriedades."

"E que propriedades são essas, pode-se saber?"

"São as terras que eram do meu pai, lá nos Cerejais."

"Cerejais, ora é? Onde é isso?"

"É um lugarejo junto a Alfândega da Fé, minha senhora."

Dona Beatriz parou totalmente de tricotar. Queria ter o cérebro livre para avaliar adequadamente o rapaz.

"Explique-me lá isso um pouco melhor. Sendo órfão e tendo terras perto de Alfândega, como faz o senhor para se sustentar e pagar os estudos aqui em Bragança?"

"As minhas terras produzem muita coisa, minha senhora. Azeitonas, cerejas e amêndoas.

Pegamos nas azeitonas e fazemos muito azeite, que depois vendemos às mercearias de Alfândega."

"Não entendo. Se o senhor é órfão de pai e mãe e está aqui em Bragança a estudar no liceu, como faz para controlar a produção nessas terras?"

"É a minha tia, minha senhora. A irmã do meu pai está a administrar as propriedades enquanto eu termino os meus estudos."

"Hmm", murmurou a viúva, pensativa. "E são coisa grande, essas terras?"

Luís balançou a cabeça, hesitante; grande e pequeno pareciam-lhe conceitos relativos.

"É maior que um quintal", disse. "Mas também não se pode dizer que seja uma grande propriedade."

"Estou a ver", observou dona Beatriz. Ajeitou o rolo de lã e recomeçou a tricotar. "Vai terminar o liceu, ora é?"

"Sim, senhora."

"E depois? Gostaria de seguir a carreira militar?"

O rapaz observou-a, espantado com a inesperada e despropositada sugestão.

"Eu? Militar?" Abanou a cabeça. "Não, não estou a pensar em tal."

"E porquê?", interrogou-o ela, subitamente empertigada. "Tem alguma coisa contra os militares?"

Luís percebeu que se tratava, por algum motivo que não descortinava, de um ponto sensível.

"Claro que não."

Dona Beatriz voltou ao tricot.

"O meu marido era militar, que Deus o tenha. Tinha um grande futuro pela frente, mas teve azar em apanhar os gases, coitado." Ergueu a parte da camisola que já fizera e contemplou-a, avaliando o trabalho. "É uma excelente carreira, sem dúvida. Tem distinção e pode-se chegar longe. São os militares que mandam na porcaria deste país. Olhe o senhor presidente da República. Não é ele militar?"

"É verdade, minha senhora", assentiu, preparando-se para contornar a questão. "A carreira militar tem grande prestígio, sem dúvida. Mas, sabe, o problema é que é uma vida que não me atrai muito."

A mãe de Amélia fez um estalido com o canto da língua,

mostrando o seu desagrado.

"Então o que tenciona fazer?"

"Bem, quero seguir um curso superior."

Dona Beatriz sorriu de leve. Ora ali estava algo que afinal poderia revelar-se interessante.

"Um doutor, portanto."

"Isso."

"Espero que seja Medicina ou Direito", sentenciou a mulher, transmitindo uma nova mensagem clara quanto às suas expectativas. Ergueu os olhos da camisola de lã e fitou-o. "Sabe, são os únicos cursos que interessam a uma pessoa distinta."

Luís hesitou.

,

"Ainda... ainda não sei, minha senhora. Não está nada

decidido."

"Mas tem alguma coisa em mente?"

"Eu... enfim, tenho."

"O quê?"

"Estava a pensar em... em Veterinária."

Dona Beatriz abriu o rosto numa expressão quase escandalizada.

"Veterinária? Valha-me Deus! Mas por que diabo quer você meter-se em Veterinária?"

"Sabe, gosto muito de animais..."

"Todos gostamos de animais", cortou a senhora com acidez. Olhou para Francisco, que permanecia especado ao lado dela. "Até tu, não é, Chico?"

"Sim, minha senhora."

"Gostas de animais, não gostas?"

"Adoro animais, minha senhora." Passou a língua pelos lábios. "O coelho de ontem estava muito bom."

A viúva riu-se e fitou Luís.

"Aqui o Chico tem graça", observou. "Não pense que ele está a brincar. É incapaz de dizer uma piada, não tem sentido de humor nenhum, mas é nisso que o rapaz tem graça." Pigarreou. "Pois, também eu gostei imenso do coelho de ontem, mas a verdade é que isso não me deu nenhum impulso de ser veterinária."