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Luís vacilou, sem saber muito bem como lidar com o inesperado e estranho argumento.

"Bem, eu... enfim... ainda tenho de pensar no assunto", tergiversou, gaguejando. "Depois...

depois decido."

"Pois então decida. E decida depressa e bem."

XII

A conversa deixou dona Beatriz Campos hesitante. O rapaz não era o que sonhara para a filha. Embora lhe adivinhasse firmeza por detrás da postura aparentemente submissa, a verdade é que Luís se lhe afigurava uma aposta algo arriscada. Que história era aquela de querer ser veterinário? Para que precisava a filha de um homem que passasse o dia a tratar de pulgas? E, o que era mais importante, onde já se vira alguém querer seguir um curso superior sem ter claro na sua mente que tiraria Medicina ou Direito? Seria ele porventura tonto? Por outro lado, não lhe parecia ser oriundo de famílias abastadas. Era um facto que não se tratava de um pé-descalço qualquer, sempre tinha umas terrazitas lá para o cu de Judas; pela descrição não lhe parecia grande quinta, é certo, mas... enfim, sempre era melhor que nada, não era?

Ou se calhar não era.

Apesar das dúvidas de dona Beatriz, Luís continuou a acompanhar a namorada nos passeios matinais até ao liceu.

Depois do episódio com o reitor, tinham-se acabado as piadinhas das colegas; o casalinho era já conhecido e dizia-se que aquilo iria certamente acabar "em casório".

"A minha mãe foi ontem ao liceu e armou um escabeche que só visto", observou Amélia na semana seguinte, seguiam os dois pela rua fora a caminho do liceu.

"Não me digas!", exclamou Luís. "Ela falou com quem?"

"Com o badigo!"

"A tua mãe foi falar com o gordo?"

"Foi falar, não. Foi gritar."

"Tu estavas lá?"

Amélia abanou a cabeça.

"Fiquei à porta, mas ouvi tudo. A minha mãe disse-lhe das boas."

"Ai é?"

"Disse-lhe que eu não era filha dele e que não me podia bater assim sem mais nem menos. E

perguntou-lhe a que propósito me chamou lefraim."

"E o tipo?"

"Oh, foi respondendo como pôde. Havias de o ter escutado. A princípio veio com ares muito autoritários, com a mania de que é bom, a dizer que ainda me ia instalar um procedimento disciplinar, que eu podia ser expulsa da escola, que isto e que aquilo. Enfim, essa conversa."

"E a tua mãe?"

"A minha mãe ouviu-o com muita calma e, quando ele se calou, começou o espectáculo. Gritou tanto que toda a gente parou e ficou a ouvir no corredor. Parecia que estavam a escutar uma novela na telefonia. O melhor foi quando a minha mãe disse que ia apresentar queixa ao inspector. Ficou tudo de boca aberta."

"Ah! E o badigo?"

"Amochou."

Riram-se os dois.

"Ela apresentou mesmo queixa?"

A rapariga encolheu os ombros.

"Sei lá."

"Mas devia", atalhou Luís. "O badigo pode abrir-te um procedimento disciplinar, mas não te pode bater, já não és nenhuma criança. A inspecção devia ser avisada."

"Bem, a minha mãe vai amanhã de viagem. Se calhar quer tratar do assunto pessoalmente em Lisboa."

"Ah, ela disse-te isso?"

"Claro que não. A minha mãe nunca me conta os seus planos."

"Porquê?"

Amélia suspirou.

"Tu não conheces mesmo a minha mãe."

O episódio com o reitor teve o condão de envolver Amélia num ambiente de solidariedade no liceu. O reitor não era uma figura que despertasse simpatia entre funcionários, alunos e pais. Tinham-lhe respeito, como era normal em relação a figuras de autoridade, mas era um respeito nascido apenas da posição hierárquica que ocupava, não do exemplo que dava ou da consideração que inspirava. Até Maria das Dores, a morena de língua afiada com quem Amélia se desentendera, se tornou mais dócil.

Acabaram-se assim os gracejos e os dois voltaram a encontrar-se com mais assiduidade nos intervalos das aulas. O passeio até ao liceu continuou a ser o momento alto do dia, a única altura em que conseguiam estar a sós, apesar de se encontrarem na rua. Mas passavam amiúde as manhãs juntos,

nos corredores do liceu, sem esconderem o sentimento que os unia, embora evitando gestos que os comprometessem. Nisso Amélia era cuidadosa. Beijos, só os do encontro e os da despedida; os outros eram adivinhados entre a ternura derramada pelas palavras enamoradas e pelos olhares que trocavam.

"A minha mãe anda estranha", observou Amélia uma manhã, três semanas depois de ela ter falado com o reitor.

Aproximavam-se já do liceu, após um passeio particularmente silencioso da parte dela.

"Estranha como?"

A rapariga contraiu a boca.

"Não sei, anda menos faladora. Parece preocupada."

"Estará doente?"

Ela lançou-lhe um olhar perturbado.

"Sabes que já pensei nisso? Achas que ela pode mesmo estar doente e não me querer dizer nada?"

Luís passou a mão pelo queixo.

"É difícil de dizer. Quando é que ela começou a parecer-te preocupada?"

"Foi depois de voltar de viagem. Lembras-te que ela foi falar com o reitor e se ausentou logo a seguir?"

"Sim."

"Esteve uns dias fora e quando voltou passou a andar mais calada."

"E onde foi ela?"

"Sei lá."

"Terá ido a Lisboa?"

"Não sei. Na altura pensei que tivesse ido apresentar queixa ao ministério e passasse pelo Douro para ver a minha irmã, mas, se assim fosse, ter-me-ia dito alguma coisa, teria dado novidades dela, não é?"

"E não disse nada?"

"Nem uma palavra. Tem é andado mais calada, como se cismasse com alguma coisa."

Parou e fitou-o com ansiedade. "Achas que está doente e não nos quer dizer nada? Achas que ela foi a um médico?"

"Caramba, onde já vai isso, rapariga! Não há-de ser nada, fica descansada."

"Mas tu próprio me perguntaste se ela estaria doente..."

"Sim, mas se fosse alguma coisa de grave já saberias. Se calhar ela foi mesmo a Lisboa queixar-se do badigo. Não te esqueças de que a tua mãe se ausentou logo depois de ter dito ao gordo que ia apresentar queixa dele à inspecção."

Chegaram à porta do liceu.

"Sim, tens razão." Reflectiu um instante. "Mas, se é só isso, por que razão anda tão calada? Que eu saiba, uma queixa à inspecção não é coisa que leve uma pessoa a mudar de comportamento."

Luís considerou este argumento.

"Pois, tens razão." Coçou a cabeça. "Olha lá, porque não lhe perguntas?"

"Já perguntei."

"E ela?"

"Diz que não é nada e que eu ando a imaginar coisas. A seguir torna-se mais faladora, mas eu bem vejo que é para disfarçar." Abanou a cabeça. "Não, passa-se mesmo alguma coisa."

"Não há-de ser nada de especial", insistiu ele, tentando desdramatizar.

Amélia fitou o namorado com intensidade.

"Eu conheço a minha mãe, Luís. Se há coisa que eu sei é que ela está a tramar qualquer coisa."

"Mas o quê?"

A rapariga estreitou os olhos.

"Não sei", disse. "Mas de certeza que não é coisa boa."

XIII

O Sol baixo do alvorecer pestanejava sem cessar, ora agora clareava, ora agora vinha a sombra, num permanente esconde--esconde entre o astro encandeante e as nuvens brancas. Os ardilosos farrapos de algodão deslizavam baixos, tapando e destapando a luz da manhã com divertida astúcia, o que emprestava ao dia uma tonalidade de humores incertos, num momento era alegria, logo depois tudo se toldava.

Ancorado na esquina da rua, Luís deixara já de notar este passatempo que o distraíra apenas alguns minutos antes; tinha agora uma outra prioridade. Consultou o relógio pela enésima vez e esfregou rapidamente as mãos para se aquecer.